sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Clinton, Assange e a guerra à verdade



John Pilger

Em 16 de Outubro a Australian Broadcasting Corporation (ABC) divulgou uma entrevista com Hillary Clinton: uma das muitas destinadas a promover o seu livro-de-ajuste-de-contas sobre o porquê de não ter sido eleita Presidente dos EUA.

Folhear o livro da Clinton, What Happened (O que aconteceu), é uma experiência desagradável, como uma dor de barriga. Calúnias e lágrimas. Ameaças e inimigos. "Eles" (os eleitores) foram objecto de uma lavagem ao cérebro e foram arrebanhados contra ela pelo odioso Donald Trump com a cumplicidade de eslavos sinistros enviados da grande treva conhecida como Rússia, apoiados por um "niilista" australiano, Julian Assange.

Em The New York Times foi publicada uma notável fotografia de uma jornalista a consolar Clinton, que acabara de entrevistar. A líder perdedora era, acima de tudo, "absolutamente feminista". Os milhares de vidas de mulheres que esta "feminista" destruiu quando no governo – Líbia, Síria, Honduras – eram irrelevantes.

Na revista New York, Rebecca Traister escreveu que Clinton finalmente exprimia "alguma legítima indignação". Até lhe era difícil sorrir: "tão difícil que os músculos da cara lhe doíam". Certamente, concluía, "se atribuíssemos aos ressentimentos das mulheres o mesmo destaque que concedemos aos rancores dos homens, a América seria forçada considerar que todas estas mulheres iradas poderão ter algo a dizer".

Patacoadas deste tipo, trivializando a luta das mulheres, vêm marcando as hagiografias mediáticas de Hillary Clinton. O seu extremismo político e o seu belicismo não têm importância. O seu problema, escreveu Traisler, foi "as pessoas terem-se fixado em seu prejuízo nas histórias dos correios electrónicos". Ou seja, terem-se fixado na verdade.

Os emails divulgados do director de campanha de Clinton, John Podesta, revelaram uma ligação directa entre Clinton e o apoio e financiamento do jihadismo organizado e do Estado Islâmico (ISIS). A fonte principal do terrorismo islâmico, a Arábia Saudita, desempenhou um papel central na sua carreira.
Um email de 2014, enviado por Clinton a Podesta pouco depois de ela ter deixado o cargo de secretária de Estado, revela que o Estado Islâmico é financiado pelos governos da Arábia Saudita e do Qatar. Clinton aceitou vultosos donativos de ambos governos para a Fundação Clinton.

Como secretária de Estado aprovou a maior venda mundial de armas aos seus benfeitores, no valor de mais de $80 mil milhões. Graças a ela as vendas de armas dos EUA em todo o mundo – a serem usadas em países agredidos como o Iémen – duplicaram.

Isto foi revelado pela WikiLeaks e publicado por The New York Times. Ninguém duvida que os correios electrónicos são autênticos. A campanha subsequente para denegrir WikiLeaks e o seu editor em chefe, Julian Assange, como "agentes da Rússia" ampliou-se até uma espectacular fantasia conhecida como "Russiagate". Diz-se que o enredo teria a assinatura do próprio Vladimir Putin. Não existe a mínima prova.

A entrevista do ABC Australia à Clinton é um exemplo notável de difamação e censura por omissão. Diria mesmo que é modelar nesse aspecto.

"Ninguém", diz Clinton à entrevistadora, Sarah Ferguson, "poderia ter deixado de se comover perante a dor que a sua face exprimia naquele momento [da tomada de posse de Trump] … recorda-se de quão visceral foi para si?".

Tendo estabelecido o sofrimento visceral de Clinton, Ferguson pergunta acerca do "papel da Rússia".

Clinton: Penso que a Rússia afectou as percepções e as opiniões de milhões de eleitores, sabemo-lo agora. Penso que a intenção deles, vinda do próprio topo com Putin, era prejudicar-me e ajudar Trump.

Ferguson: Em que medida isso era uma vingança pessoal de Vladimir Putin contra si?

Clinton: … Quero dizer que ele quer desestabilizar a democracia. Quer minar os EUA, quer perseguir a Aliança Atlântica e nós consideramos a Austrália como uma espécie…uma extensão disso….

A verdade é o oposto. São as forças armadas ocidentais que se estão a concentrar na fronteira russa pela primeira vez desde a Revolução Russa, há 100 anos.

Ferguson: Quanto [Julian Assange] a prejudicou pessoalmente?

Clinton: Bem, eu tive uma grande história com ele porque quando era secretária de Estado a WikiLeaks publicou uma quantidade de informação sensível do nosso Departamento de Estado e do nosso Departamento de Defesa.

O que Clinton não diz – e a sua entrevistadora não lhe lembra – é que em 2010 a WikiLeaks revelou que a secretária de Estado Hillary Clinton havia ordenado uma campanha secreta dos serviços de informações visando dirigentes da ONU, incluindo o secretário-geral Ban Ki-moon e os representantes permanentes da China, Rússia, França e Grã-Bretanha no Conselho de Segurança. Uma directiva classificada, assinada por Clinton, foi enviada a diplomatas dos EUA em Julho de 2009, solicitando detalhes técnicos forenses sobre os sistemas de comunicações utilizados pelos funcionários de topo da ONU, incluindo palavras-passe e chaves pessoais de codificação utilizados em redes privadas e comerciais.

Ficou conhecido como Cablegate. Era espionagem fora da lei.

Clinton: Ele [Assange] é muito claramente um instrumento dos serviços de informações russos. E fez aquilo que lhe pediram.

Nem Clinton apresentou qualquer prova que fundamentasse esta grave acusação, nem Ferguson a contestou.

Clinton: Não se vê informação negativa e prejudicial acerca do Kremlin a ser filtrada em WikiLeaks. Não se vê nada disso publicado.

Isto é falso. A WikiLeaks já publicou uma volumosa quantidade de documentos sobre a Rússia – mais de 800 mil, na sua maioria críticos, muitos dos quais utilizados em livros e processos judiciais.

Clinton: Portanto penso que Assange se tornou uma espécie de niilista oportunista que serve um ditador.

Ferguson: Muita gente, incluindo na Austrália, pensa que Assange é um mártir da liberdade de opinião e da liberdade de informação. Como é que o descreveria? Acabou de o descrever como niilista.

Clinton: Sim, e também como um instrumento. Quero dizer que ele é um instrumento dos serviços de informações russos. E se ele é tanto um mártir da liberdade de opinião, porque é que WikiLeaks nunca publica nada que saia da Rússia?

Ferguson, de novo, nada disse para contestar isto ou para a corrigir.

Clinton: Houve uma operação concertada entre a WikiLeaks e a Rússia e muito provavelmente pessoas nos EUA no sentido de instrumentalizar essa informação, de inventar histórias… de ajudar Trump.

Ferguson: Agora, juntamente com essas histórias insólitas, havia informação revelada sobre a Fundação Clinton que pelo menos no espírito de alguns eleitores pareceu associá-la a…

Clinton: Sim, mas era falso!

Ferguson: … tráfico de informações …

Clinton: Era falso! Era totalmente falso!….

Ferguson: Compreende quão difícil era para alguns eleitores entender os volumes de dinheiro que a Fundação [Clinton] estava a receber, a confusão com a consultoria que estava também a obter fundos, a receber ofertas e viagens e outras coisas para Bill Clinton, a ponto de a própria Chelsea estar também a ter alguns problemas com isso?…

Clinton: Olhe Sarah, desculpe, quer dizer, eu conheço os factos…

A entrevistadora da ABC louvou Clinton como "o ícone da sua geração". Não lhe perguntou nada acerca das enormes somas que ela arrecadou da Wall Street, tais como os US$675 mil que recebeu por uma conferência no Goldman Sachs, um dos bancos no centro do crash de 2008. A ganância de Clinton perturbou profundamente o tipo de eleitores que ela insultou como "deploráveis".

À procura claramente de uma manchete fácil para a imprensa australiana, Ferguson perguntou-lhe se Trump "representava um perigo claro actual para a Austrália", e obteve a resposta previsível.

Esta famosa jornalista não fez qualquer menção ao "perigo claro e actual" que Clinton representou para o povo do Irão, a quem uma vez ameaçou de "obliterar totalmente", nem aos 40 mil líbios que morreram no ataque à Líbia em 2011 por ela orquestrado. Ruborizada de excitação, a secretária de Estado rejubilou-se com a morte horrenda do líder líbio, coronel Khadafi.

"A Líbia era a guerra de Hillary Clinton", disse Julian Assange numa entrevista filmada comigo no ano passado. "Barack Obama inicialmente opôs-se a ela. Quem a defendia? Hillary Clinton. Está documentado em toda a extensão dos seus emails…há mais de 1.700 mensagens, de um total de 33 mil que publicámos, só sobre a Líbia. Não se trata de a Líbia ter petróleo barato. Ela concebia a remoção de Khadafi e o derrube do Estado líbio como algo que utilizaria na corrida às eleições presidenciais.

"Já em 2011 havia um documento interno chamado o Líbia Tick Tock que foi produzido para Hillary Clinton. É a descrição cronológica de como ela era a figura central na destruição do Estado líbio, a qual resultou em cerca de 40 mil mortos no interior da Líbia, na entrada dos jihadistas e do ISIS no país, levando à crise europeia de refugiados e migrantes.

"Não só havia pessoas a fugirem da Líbia, a fugirem da Síria, a desestabilização de outros países africanos em consequência do fluxo de armamentos, como também o próprio Estado líbio deixara de estar em condições de controlar o movimento de pessoas através dele.

Isto – não o sofrimento "visceral" de Clinton por perder para Trump nem o resto das patacoadas em defesa própria na sua entrevista com a ABC – é que era a história. Clinton partilha a responsabilidade pela desestabilização maciça do Médio Oriente que conduziu à morte, ao sofrimento e à fuga de milhares de mulheres, homens e crianças.

Ferguson não disse nem uma palavra acerca disto. Clinton difamou repetidamente Assange, o qual nem foi defendido nem lhe foi oferecida a possibilidade de responder na cadeia de comunicações pública do seu país.

Num tweet enviado de Londres, Assange citou o Código de Práticas da própria ABC que diz: "Quando forem feitas alegações sobre uma pessoa ou uma organização, devem ser realizados os esforços razoáveis na circunstância para proporcionar uma justa oportunidade de resposta".

Na sequência da transmissão da ABC, a produtora executiva de Ferguson, Sally Neighbour, re-tweetou o seguinte: "Assange is Putin's bitch. We all know it!" ("Assange é a gaja de Putin. Todos nós sabemos disso!")

O insulto, depois apagado, até foi utilizado como link para a entrevista da ABC intitulada: Assange is Putins (sic) b****. We all know it!

Ao longo dos anos, desde que conheci Julian Assange, tenho testemunhado a insultuosa campanha pessoal procurando detê-lo e deter a WikiLeaks. Tem sido um ataque frontal aos denunciantes, à liberdade de opinião e ao jornalismo livre, todos os quais estão agora sob ataque constante de governos e dos controladores corporativos da Internet.

Os primeiros ataques partiram do Guardian que, tal como um amante rejeitado, se voltou contra a acossada fonte que antes utilizara, depois de ter lucrado amplamente com as revelações de WikiLeaks. Sem que nem um centavo fosse para Assange ou para a WikiLeaks, o livro do Guardian levou a um lucrativo negócio com um filme de Hollywood. Nele Assange era retratado como "frio e indiferente" e uma "personalidade perturbada".

Foi como se um ciumento desesperado se recusasse a aceitar que os seus feitos estivessem em contraste agudo com o que faziam os seus detractores nos media "de referência". É como observar os guardiões do status quo, indiferentes aos tempos, debatem-se para silenciar a dissidência real e impedir que surja novamente a esperança.

Actualmente Assange continua como refugiado político do sombrio estado fazedor de guerras do qual Donald Trump é a caricatura e Hillary Clinton a corporização. A sua resistência e coragem é assombrosa. Ao contrário dele, os que o atormentam são covardes.


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