segunda-feira, 17 de agosto de 2015

O EURO E O DESEMPREGO EM PORTUGAL



Manuel Brotas [1]

Com o euro o país subiu para um novo patamar estrutural de desemprego. E dentro do euro não tem nem os meios nem as possibilidades de vir a descer dele.

Oficialmente, em Portugal, a taxa de desemprego em junho era de 12,4%. Na União Europeia era de 9,6% e na zona euro de 11,1%. Mas o cálculo é muito restritivo. Por exemplo, basta que alguém tenha trabalhado uma hora na semana de referência do inquérito para ser logo considerado empregado. A taxa oficial de desemprego, por conseguinte, não é uma boa medida do desaproveitamento da força de trabalho na sociedade.

Se considerássemos os subempregados (que trabalham menos do que gostariam), os inativos desencorajados (que querem mas já não procuraram trabalho) ou temporariamente indisponíveis, os desempregados ocupados em cursos de formação ou programas governamentais, os que se viram obrigados a emigrar para ganhar a vida, a verdadeira taxa de desemprego em Portugal seria muitíssimo maior (mais do dobro da oficial, se os emigrados cá ficassem).

O crescimento demográfico aumenta a oferta de trabalho, mas as sociedades europeias, muito especialmente a portuguesa, estão muito envelhecidas, geralmente com taxas de fecundidade longe de assegurar sequer a reposição da população. Na verdade, é a imigração que atenua a tendência longa das sociedades europeias para a extinção! São massas humanas dos países subdesenvolvidos, despojadas das suas condições e modos tradicionais de vida, destruídos pela globalização capitalista e as guerras incentivadas pelo imperialismo, que se lançam, através ou à margem dos circuitos legais da imigração, em busca de sobrevivência e de uma vida melhor nos países europeus, para que o grande capital possa afinal aproveitar e explorar, simultaneamente lá e cá, essa força de trabalho mais barata e disponível. Ainda recentemente, no mês de abril, morreram mais de mil e duzentas pessoas, incluindo dezenas de crianças, em trágicos naufrágios de embarcações clandestinas no Mediterrâneo, vítimas das necessidades de acumulação do grande capital europeu e da criminosa regulação dos fluxos migratórios de acordo com as suas conveniências.

Cingindo-nos ao essencial, podemos considerar aqui a demografia mais ou menos constante e, incluindo o contributo da emigração, deixar de lado as variações da população ativa (Portugal, que além da imigração tem uma forte emigração, perdeu o acréscimo de ativos que tinha ganho desde 2000).

Mas não podemos fazer o mesmo com o progresso tecnológico, que aumenta o estoque de capital e a riqueza produzida por trabalhador. Isto é, que aumenta o valor das maquinarias e equipamentos (bem como das matérias-primas, materiais auxiliares, energia e instalações) empregues por trabalhador e o valor do produto por trabalhador. O progresso tecnológico substitui a força de trabalho humana pela máquina, incluindo a informatização, a automatização, a robotização, as novas tecnologias. A competição feroz entre os capitalistas, para baixarem os custos e ganharem quota de mercado, estimula, impulsiona e obriga à utilização do progresso tecnológico, ao aumento do capital investido em máquinas e matérias-primas em relação ao capital investido em força de trabalho, ao aumento da produtividade do trabalho.

A compreensão disto, pelo menos a constatação disto, implica uma conclusão muito importante. Sem considerar os efeitos demográficos, a maneira de contrariar os efeitos do progresso tecnológico sobre a diminuição da taxa de emprego, nas sociedades capitalistas, é aumentar ainda mais a acumulação de capital e a produção de riqueza. Não é aqui o lugar para a importante discussão sobre os limites, materiais (incluindo energéticos) e económicos, deste crescimento.

Se a acumulação de capital não é mais rápida do que o aumento do estoque de capital em relação à força de trabalho e se o aumento da produção total não é mais rápido do que o aumento da produtividade do trabalho, a proporção do desemprego não baixa [2] . Dito de outra maneira, os ritmos do investimento (o aumento do capital acumulado) e do crescimento económico (o aumento da produção social) têm que ser maiores que o ritmo do progresso tecnológico.

O euro gera desemprego 

Por isso a Europa – mais precisamente a zona euro – e muito especialmente Portugal vivem uma grande contradição.

Por um lado, a concorrência capitalista, interna e externa, em todas as áreas de negócio, particularmente na produção de bens transacionáveis, obriga à permanente aplicação dos novos equipamentos e materiais, das novas técnicas e tecnologias, dos novos métodos de produção, de organização e de gestão, ao contínuo revolucionamento do tecido produtivo e económico. Por outro lado, as regras do pacto de estabilidade e crescimento, mais recentemente do tratado orçamental e da governação económica, refreiam, contêm e, no caso português, contraem mesmo o investimento e o crescimento económico. Assim sendo, o resultado é o esperado, o desemprego, bem calculado, sem prejuízo de significativas oscilações, aumenta, pelo menos não diminui.

Evidentemente, como sucede com qualquer fenómeno económico e social numa sociedade cheia de turbulência como a capitalista, este aumento ou esta manutenção dos elevados níveis de desemprego nos países da zona euro tem muitas irregularidades e deve ser apreciado em traços largos, nas suas tendências e não nas suas oscilações conjunturais. Varia no tempo e varia no espaço. Alguns países são muito mais prejudicados que outros e a divergência económica e social acentua-se.

Portugal praticamente não cresceu desde que aderiu ao euro, em janeiro de 1999. E não cresceu mesmo nada desde que começaram a circular as suas notas e moedas, em janeiro de 2002 (mais rigorosamente, o pouco que cresceu voltou a perder). O investimento, aferido pela formação bruta de capital fixo em ordem ao PIB, está em queda praticamente desde a adesão ao euro e aos níveis mais baixos pelo menos das últimas cinco décadas. Nestas condições, não é nada surpreendente que os níveis de desemprego tenham aumentado substancialmente. Apenas para dar uma ideia, cometendo a ligeireza de ignorar as alterações metodológicas do apuramento, o desemprego oficial passou de uma média inferior a 6%, no quinquénio de 1990-94, antes da galopada para a adesão ao euro, para uma média superior a 14%, no recente quinquénio 2010-14, com o país completamente atascado no euro.

Poderia afirmar-se que as elevadas percentagens dos anos recentes se deveram à grande crise capitalista que irrompeu no mundo e na Europa em 2008. Seria justo apenas na medida em que a crise contribuiu notoriamente para isso. Mas, antes dela, com o euro, a taxa de desemprego já vinha a crescer desde o início da década e já tinha duplicado de valor.

A própria crise – e a sequela da crise da dívida soberana, que levou o governo a chamar a troika – confirmou a disfuncionalidade da integração de Portugal na moeda única. A arquitetura da zona euro, a restrição do défice orçamental, o corte da despesa pública e a contenção forçada do endividamento impediu que se adotassem as medidas contracíclicas apropriadas, com o incremento do investimento público e o estímulo ao investimento privado produtivo, com o fomento do rendimento e do consumo dos setores populares, que teriam impulsionado a procura, o crescimento e o emprego, em vez de, inversamente, agravar e prolongar a crise (e aumentar ainda mais a dívida). Mais uma vez, estar no euro contribuiu para o desemprego.

O caso é evidentemente mais grave para os países periféricos e atrasados da zona, que já tinham sido os mais prejudicados com a desproteção dos seus mercados internos e imposição por via comunitária da livre concorrência, na verdade a livre demolição, das suas produções nacionais com as dos países tecnologicamente mais avançados da UE ou as de outros países com custo de mão-de-obra muito inferior.

Mais grave, porque a moeda única e a respetiva gestão monetária, financeira e orçamental não estão feitas para eles. O câmbio ajustou-se genericamente à capacidade produtiva e exportadora da Alemanha, aos seus níveis salariais e de produtividade, ao seu perfil industrial e comercial, às necessidades dos seus bancos e instituições financeiras, e prejudicou a competitividade das produções portuguesas, arrasando setores e extensos segmentos do tecido produtivo nacional, com a destruição de muitos milhares de empresas e a inviabilização da recuperação, do renovamento e do lançamento de tantas outras. As consequências na perda e na desqualificação do emprego, no aumento da precariedade e do desemprego, foram inexoráveis. Note-se o contraste entre Portugal e a Alemanha. Em relação ao período anterior à crise, o primeiro aumentou o desemprego, a segunda diminuiu.

A perda do emprego produtivo 

O emprego produtivo foi especialmente atingido, o que é testemunhado com toda a nitidez pela impressionante redução de um terço dos trabalhadores da indústria desde a adesão ao euro até 2012 (últimos dados). São menos os trabalhadores portugueses que produzem riqueza e maior a proporção dos trabalhadores, igualmente explorados, que asseguram a circulação e a distribuição da riqueza criada, nomeadamente do seu controlo, da sua concentração e centralização nos grupos económicos e financeiros, associados e dependentes do grande capital transnacional europeu. A adoção da moeda única facilitou ainda mais os movimentos de capitais e lubrificou os canais financeiros e especulativos de transferência de riqueza criada no país para o estrangeiro, que aqui não é reinvestida nem cria postos de trabalho.

Perdeu-se emprego e perdeu-se segurança no emprego. Aumentou a precariedade. Aumentou a intensidade do desemprego, isto é, o número de desempregados e a duração do tempo de desemprego. Quando o primeiro-ministro, com todo o seu cinismo de cara-de-pau, afirmou, em março passado, que “há pessoas que continuarão a não ter oportunidade de emprego” está simplesmente a desmentir o que afirmou há três anos, de que o desemprego representava uma oportunidade, e a enunciar uma lei de bronze da integração económica e monetária europeia de Portugal.

A saber. Com o euro, o país passou para um novo patamar estrutural de desemprego . E, dentro do euro, com as inevitáveis oscilações, que podem ser consideráveis ao longo dos anos, não tem nem os meios nem possibilidades razoáveis de vir a descer dele . Que o povo português retire daí as devidas conclusões do que tem a fazer.

Notas
[1] Publicado originalmente na revista Portugal e a UE, junho de 2015, nº 66. Ligeiramente melhorado e com os dados atualizados (Eurostat, taxa de desemprego mensal, com ajustamento sazonal, 12/08/2015).
[2] Uma conta elementar ajuda a perceber. Designando por e a taxa de emprego, por N a oferta de trabalho, por L a força de trabalho empregue, então e = L/ N . Designando por K o estoque de capital, por Y a produção total, então a relação entre o estoque de capital e a força de trabalho é dada por K / L e a produtividade do trabalho é dada por Y / L , aumentando ambas com o progresso tecnológico. Como e = L / N = K /[( K / L ) N ] = Y /[( Y / L ) N ], se a oferta de trabalho ( N ) se mantém aproximadamente constante, para o emprego não diminuir, isto é, o desemprego não crescer, o estoque de capital ( K ) e a produção total ( Y ) têm que aumentar mais do que aquelas (do que K / L e Y / L ). 


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ 

Manifestação em Bissau contra a demissão do Governo de Domingos Simões Pereira




Milhares de pessoas oriundas das nove regiões da Guiné-Bissau participaram nesta segunda-feira (17.08) na capital guineense numa manifestação contra a demissão do Governo liderado por Domingos Simões Pereira.

Dirigindo-se aos manifestantes, o deposto primeiro-ministro, destacou que com a mobilização da sociedade civil e dos partidos políticos as instituições da República devem respeitar a vontade do povo.

”Mais do que o PAICV, é a sociedade civil que se mobiliza e todos os partidos políticos. Esta moldura humana fala por si, ou seja, deixa bem clara qual é a vontade do povo. Sei que as instituições da República vão ouvir esse desejo porque ninguém pode criar obstáculos à vontade do povo. É ao povo que o poder pertence, o povo expressou essa vontade e portanto temos a obrigação de respeitar a vontade do povo. E sei que é isso que vai acontecer ” sublinhou Domingos Simões Pereira.

PAIGC propõe novamente Domingos S. Pereira

O Partido Africano de Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) entregou nesta segunda-feira uma carta na secretaria-geral da Presidência onde propõe novamente o nome de Domingos Simões Pereira como próximo primeiro-ministro.

Segund fontes contactadas pela DW África, de acordo com os Estatutos do partido, é o nome de Domingos Simões Pereira que o PAICG teria que apresentar ao chefe de Estado para ocupar a chefia do governo.

Os Estatutos do PAIGC, dizem que em caso de vitória eleitoral, o presidente do partido é automaticamente chefe do governo.

Presidência pede a funcionários públicos para continuarem a trabalhar

A Presidência da República da Guiné-Bissau emitiu um comunicado em que pediu aos funcionários públicos guineenses que continuem a trabalhar, apesar da destituição do Governo.

No documento indica-se que "não obstante a queda do Governo, os trabalhos na administração pública continuam a decorrer normalmente".
O ministro das Finanças cessante, Geraldo Martins, referiu na sexta-feira (14.08) em conferência de imprensa que a demissão do executivo pelo Presidente e o ambiente que a antecedeu fazem com que o país esteja "parado, bloqueado" desde "há duas semanas".

A situação está a ter um "impacto negativo" ao nível das receitas do Estado, sublinhou Geraldo Martins.

CEDEAO pede diálogo para resolver crise política

O Presidente do Senegal e da Autoridade de Chefes de Estado da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), Macky Sall, pediu uma solução através do diálogo para a crise política na Guiné-Bissau.

"O Presidente [Sall] está confiante e acredita que é possível encontrar uma solução pacífica e sustentada para a crise, através de um diálogo concertado envolvendo todos os atores políticos da Guiné-Bissau, em estreita colaboração com os parceiros regionais e internacionais", refere uma nota publicada no portal da CEDEAO.

No comunicado, o líder senegalês mostrou-se "preocupado" com o facto de os desentendimentos entre o Presidente Vaz e o primeiro-ministro Simões Pereira terem levado o chefe de Estado a demitir o Governo.

Sall lamentou que os esforços da CEDEAO e da restante comunidade internacional no sentido de resolver a crise não tenham tido resultado.

De acordo com o comunicado, o Presidente Sall considera que a crise "pode afetar os compromissos dos doadores da Guiné-Bissau” que numa mesa redonda realizada em março, em Bruxelas, anunciaram mil milhões de euros de intenções de apoio.

Apesar de "aplaudir a atmosfera pacífica observada até agora no país", Macky Sall "apelou aos líderes políticos para continuarem a explorar formas pacíficas para resolver o atual impasse e instou as forças de defesa e de segurança a manterem o compromisso de ficarem fora da política".

Fátima Tchumá (Bissau)  / Lusa, em Deutsche Welle

Estudantes angolanos no Brasil publicam vídeo de solidariedade com ativistas




Um grupo de jovens angolanos, a estudar no Brasil, realizou um vídeo de solidariedade com os presos políticos do regime angolano e todos aqueles que são vítimas de perseguição e intolerância política em Angola

O vídeo “Liberdade já. Angola livre”, publicado nas redes sociais, visa solidarizar-se com os presos políticos em Angola. Foi criado por um grupo de jovens estudantes em S. Paulo, no Brasil.

A DW África falou com o mentor da iniciativa, Osvaldo Gomes, estudante de administração numa universidade privada. O jovem diz que tem "tido contato com outros estudantes que partilham os mesmos ideais" e então decidiram fazer o vídeo.

A razão é porque vai regressar à Angola e não quer voltar ao seu país e ver os seus filhos “passarem pelo mesmo que ele está a passar”. Osvaldo espera que “eles encontrem uma Angola livre do ponto de vista socioeconómico e estrutural”. O jovem quer que o seu país “tenha tudo aquilo que faz uma sociedade boa para se viver como mais cultura e melhor educação”, conta o estudante.

Osvaldo, tal como os seus companheiros, quer que as pessoas possam expôr os seus pensamentos livremente e sem medo de represálias, “liberdade de expressão” diz o jovem e acrescenta que “decidiram fazer o vídeo sob forma de protesto não só em apoio a esse pessoal que está preso, como também contra outras injustiças que o governo de José Eduardo dos Santos tem feito nos últimos anos” comenta.

O estudante angolano diz-se “indignado” e “frustrado” por ver as notícias à distância e nada poder fazer.

Video "Liberdade já. Angola Livre"

Com o vídeo, “Liberdade já. Angola Livre”, Osvaldo Gomes espera incentivar mais pessoas para que “não tenham medo” e “possam dar a cara para protestar sobre aquilo que está mal. Queremos que as pessoas despertem e tenham consciência do que está a passar-se. Quanto mais gente tiver noção do que está a acontecer melhor”, concluiu Osvaldo Gomes.

Eurodeputados pedem condenação pública dos acontecimentos em Angola

É precisamente no panorama internacional que continuam a aumentar as pressões sobre o regime angolano. Um grupo de 20 eurodeputados escreveu à chefe da diplomacia europeia a pedir uma condenação pública dos recentes acontecimentos em Angola. Segundo a agência de notícias Lusa, na missiva enviada à Alta Representante da União Europeia (UE) para a Política Externa, os eurodeputados relataram os acontecimentos ocorridos a 08 de agosto em Luanda, dia da realização de uma marcha promovida pelas mães e familiares dos 15 jovens ativistas que estão em prisão preventiva desde junho.

No texto dirigido a Federica Mogherini, os parlamentares europeus referem que a marcha foi recebida com "extrema brutalidade policial", indicando que vários manifestantes foram espancados pelas autoridades e atacados pelos cães das forças policiais.

Os parlamentares perguntaram ainda na missiva se a Alta Representante vai condenar publicamente "a brutalidade policial e as restrições contra manifestações pacíficas" em Angola.

Manuel Ribeiro / Lusa, em Deutsche Welle (13.08.2015)


ANGOLANOS USADOS COMO “MULAS”



André da Costa - Jornal de Angola, entrevista

Angola é ponto de passagem do tráfico de droga, dominado por estrangeiros, e os cidadãos nacionais são utilizados, sobretudo, como “mulas”, disse ao Jornal de Angola o chefe do Gabinete Nacional da Representação da Interpol, superintendente Destino Pedro. O oficial falou das vantagens que o país tem em pertencer, há 33 anos, a esta organização internacional, que junta 194 Estados.

Jornal de Angola –Há quanto tempo existe o Gabinete da Interpol em Angola?

Destino Pedro -A Interpol é a Organização Internacional de Polícia Criminal. É o fórum onde todas as polícias concertam, partilham e trocam informações inerentes à actividade policial, visando manter a ordem pública. O Gabinete desta organização em Angola existe há mais de 33 anos. A Interpol foi das primeiras organizações internacionais a que Angola aderiu depois da Independência Nacional. Os padrões de funcionamento são os mesmos dos demais países. Rege-se pelas orientações da Polícia Nacional, Investigação Criminal e Ministério do Interior e por normas próprias da Interpol.

Jornal de Angola - Que vantagens tem Angola em ser membro da Interpol?

Destino Pedro -A principal vantagem é estar inserida no seio das organizações policiais. Nenhuma Polícia no mundo pode sozinha combater o crime transnacional. Por isso, as polícias devem estar interligadas e a Interpol faz esse papel. Ganhamos muito com a troca de informação, com a realização de acções conjuntas promovidas pela Interpol, a partilha permanente de informação e estar inserido no mundo policial.

Jornal de Angola-O Gabinete da Interpol serve de elo com outras polícias? 

Destino Pedro - O Gabinete Nacional da Interpol serve como  meio de comunicação com os 194 Estados-membros. Os funcionários do gabinete são membros do Serviço de Investigação Criminal e da Polícia Nacional. A Interpol só realiza actividades com a participação dos agentes da Polícia Nacional.

Jornal de Angola - Qual é a língua de trabalho da organização?

Destino Pedro - Temos quatro línguas de trabalho, inglês, francês, espanhol e árabe. A Interpol é a terceira maior organização internacional depois das Nações Unidas e da FIFA.

Jornal de Angola - Há visitas entre países no âmbito da inter-ajuda?

Destino Pedro - São feitas visitas constantes entre os países. As formas de funcionamento dos gabinetes nacionais da Interpol no mundo são as mesmas, com padrões iguais, porque são estruturas básicas da organização.

Jornal de Angola - Quais as consequências dos crimes transnacionais para os países?

Destino Pedro - Uma das razões para a criação da Interpol foi facilitar o trabalho das instituições policiais no combate aos crimes transnacionais. Como disse, nenhuma polícia no mundo está preparada para, sozinha, combater o crime transnacional devido aos obstáculos e desafios que este tipo de crimes apresenta. Actualmente, a criminalidade tem dimensão internacional, por isso ocorrem operações internacionais, bilaterais e multilaterais mediante partilha de informações através do Gabinete da Interpol. 

Jornal de Angola - Como se combatem os crimes transnacionais de forma eficiente?  

Destino Pedro - Só se combatem os crimes transnacionais com a cooperação policial e judicial. Quando existe um crime transnacional, concorrem vários Estados e, muitas vezes, com legislação diferente. Aí aparece a Interpol para facilitar as investigações entre as polícias e promover maior cooperação e assistência mútua legal. Hoje, a única forma viável de combater o crime transnacional é fazer recurso à cooperação policial, criminal e judicial e a Interpol facilita esse processo.

Jornal de Angola - Crime organizado e criminalidade transnacional são a mesma coisa?

Destino Pedro - Nem todo o tipo de crime organizado é transnacional. É crime organizado quando uma acção criminal é realizada por um grupo criminoso de duas ou mais pessoas, visando obter um lucro. O crime organizado pode ser transnacional quando a acção transpõe fronteiras, envolvendo Estados.

Jornal de Angola - Qual é a realidade angolana em relação ao crime organizado?

Destino Pedro - Angola faz parte do mundo, sendo atingida pelos efeitos da globalização e a criminalidade transnacional organizada aproveita-se desse fenómeno. Num mundo global, temos de admitir que existe crime organizado em Angola. A recente apreensão de 11 quilos de droga no Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro é um exemplo. 

Jornal de Angola - Existem barões da droga em Angola?

Destino Pedro - Digo que não, porque, quando se fala em  barões da droga, falamos de grandes importadores ou grandes traficantes. Grande parte da droga apreendida passa por Angola em trânsito para outros países e nisso estão envolvidos cidadãos estrangeiros com residência temporária em Angola. Não temos barões da droga e a situação do tráfico de droga não é tão preocupante se comparada com a de outros países.

Jornal de Angola - Quais são as nacionalidades dos traficantes de drogas?

Destino Pedro - Nigerianos, senegaleses, malianos. Mas a Polícia já prendeu por tráfico de drogas ­cidadãos guineenses, sul-africanos, moçambicanos e cabo-verdianos. Em relação aos angolanos, são, na maioria, contratados para a actividade de “mula”, ou seja, utilizados para transportar drogas.

Jornal de Angola - Até que ponto a Interpol pode contribuir para  a redução desse tipo de crime?

Destino Pedro - A Interpol tem uma subdirecção de combate à droga onde temos partilhado informações sobre essa realidade. Grande parte das apreensões de droga acontece mediante a troca de informações pelos canais da Interpol. A Interpol é o canal mais seguro de partilha de informações no mundo.

Jornal de Angola - Quais os ­crimes mais frequentes que a Interpol tem ajudado a desmantelar?

Destino Pedro - Tráfico de drogas, lavagem de dinheiro ou o branqueamento de capitais, tráfico de seres humanos, roubo transnacional de viaturas e o terrorismo internacional. Não temos casos de terrorismo registados em Angola. O branqueamento de capitais é a transformação de valores adquiridos de forma ilícita em bens lícitos. Por exemplo, roubar um carro e vender e com o dinheiro dessa venda comprar uma casa. Este tipo de crimes ocorre em todas as sociedades e de várias formas.

Jornal de Angola - Em Angola, há relatos de cidadãos desaparecidos. Até que ponto a Interpol pode contribuir para a localização dessas pessoas?

Destino Pedro - A Interpol tem uma base de dados sobre pessoas desaparecidas. Se um cidadão angolano desaparece e temos a percepção de ter sido raptado e transnacionalmente traficado, colocamos a informação na base de dados e outras Polícias respondem.

Jornal de Angola - Têm tido grandes êxitos em relação a essas pessoas desaparecidas?

Destino Pedro - Temos casos em que recebemos a informação de ­situações que envolvem angolanos. É o caso de crianças angolanas que tinham chegado a Portugal por tráfico de seres humanos. As autoridades tomaram conhecimento através dos canais da Interpol. A informação via Interpol, nos 194 países membros, pode ser disseminada em milésimos de segundo.

Jornal de Angola - Há crianças traficadas fora do país?

Destino Pedro - Recebemos informações das autoridades judiciais e policiais congolesas de que há crianças congolesas traficadas para Angola e vice-versa. Temos informações de crianças congolesas em Angola, que foram traficadas e as autoridades policiais estão a trabalhar nesses casos.

Jornal de Angola - Existe uma rede de prostituição organizada em Angola?

Destino Pedro -  Hoje, basta circularmos por Luanda para nos ­depararmos com cidadãs estrangeiras, de várias nacionalidades, que se prostituem nas ruas. Chegam a Angola em grupos ou aliciadas por indivíduos que tiram dividendos dessa actividade. Conhecemos os locais de prostituição, mas não é fácil levar alguém a tribunal por essa prática, devido à legislação e à complexidade desse tipo de crime.

Jornal de Angola - As queixas de cidadãos vítimas de furto são constantes. Já detectaram viaturas roubadas em Angola noutros países?

Destino Pedro - Já tivemos casos do género. No mês passado, devolvemos uma viatura roubada na Namíbia e que circulava em território angolano. Tivemos casos de viaturas roubadas em Angola que aparecem nos países limítrofes, como o Congo. Temos uma vantagem na região, já que as viaturas roubadas só podem circular nos países do Norte, devido ao Código de Estrada que usamos. Na vigência do antigo Código, tínhamos viaturas com volante à direita roubadas na Namíbia que entravam em Angola com frequência. Hoje, o número é muito limitado.

Jornal de Angola - Até que ponto o Gabinete Nacional da Interpol pode contribuir para a localização de cidadãos foragidos da Justiça?

Destino Pedro - O segundo maior objectivo da Interpol é a localização de fugitivos. Existe uma base de dados, em que são colocados todos os mandados de captura emitidos pelas autoridades competentes. É o caso do mandado de captura internacional emitido por uma Polícia que é difundida na via Interpol. Se eventualmente esse cidadão circular em Angola, podemos proceder à detenção. Há casos de estrangeiros foragidos da Justiça detidos em Angola com base em informações veiculadas pela Interpol.

Jornal de Angola - Pode indicar alguns países onde Angola localizou foragidos da Justiça através da Interpol?

Destino Pedro - Temos, nesta altura, prófugos angolanos no exterior e a Interpol facilita a localização. Ainda não conseguimos trazer nenhum de volta ao país porque não depende apenas da Interpol. O regresso de um prófugo deve decorrer de um processo de extradição que envolve outros preceitos legais.

Jornal de Angola -Um cidadão angolano que cometa um crime no estrangeiro pode ou não ser extraditado para esse país para julgamento?

Destino Pedro - Se o acto que esse cidadão cometeu no estrangeiro é considerado crime em Angola, ele pode ser detido e cumprir a pena em Angola, mas nunca é extraditado para outro país porque a Constituição da República determina que nenhum cidadão angolano pode ser extraditado.

Foto: José Soares

PRESIDÊNCIA PEDE A FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS GUINEENSE PARA CONTINUAREM A TRABALHAR




A Presidência da República da Guiné-Bissau emitiu um comunicado em que pede aos funcionários públicos guineenses que continuem a trabalhar, apesar da destituição do Governo.

“A Presidência da República exorta todos os funcionários públicos a se apresentarem nos seus lugares de serviço, como habitualmente”, refere-se no comunicado que está a ser divulgado desde domingo nos órgãos de comunicação social guineenses.

No documento indica-se que “não obstante a queda do Governo, os trabalhos na administração pública continuam a decorrer normalmente”.

O ministro das Finanças cessante, Geraldo Martins, referiu na sexta-feira em conferência de imprensa que a demissão do executivo pelo Presidente e o ambiente que a antecedeu fazem com que o país esteja “parado, bloqueado” desde “há duas semanas”.

A situação está a ter um “impacto negativo” ao nível das receitas do Estado, sublinhou.

O Presidente da República demitiu na quarta-feira o Governo liderado por Domingos Simões Pereira, apesar dos apelos lançados dentro e fora do país para que não o fizesse.

O Executivo estava em funções há um ano, depois de o PAIGC vencer as eleições com maioria absoluta e de ter recebido duas moções de confiança aprovadas por unanimidade no Parlamento – para além de ter o apoio da comunidade internacional.

Depois da demissão, Vaz pediu ao PAIGC que indicasse um nome para primeiro-ministro e o partido já anunciou que vai voltar a propor Domingos Simões Pereira.

O Democrata (gb)

Guiné-Bissau. 1500 polícias nas ruas para garantir segurança em manifestação




Há 1500 agentes da Polícia de Ordem Pública (POP) distribuídos por vários locais de Bissau para garantir a segurança da manifestação contra a demissão do Governo agendada para segunda-feira, anunciou José António Vieira, Comissário Nacional da POP.

"São 1500 agentes" em diferentes zonas, mas com "maior concentração" na área que dá acesso ao Palácio da Presidência, no centro da capital guineense onde durante a tarde deve acontecer a manifestação convocada pelo partido liderado pelo primeiro-ministro demitido, Domingos Simões Pereira.

O Comissário Nacional da Polícia garantiu que as forças da ordem "vão garantir a segurança" na manifestação, mas "respeitando os direitos dos cidadãos".

Desde as primeiras horas de hoje que são visíveis polícias a circularem em viaturas de caixa aberta e em pontos estratégicos de Bissau, equipados com bastões e alguns com capacetes.

José António Vieira afirmou que os agentes "têm a obrigação de atuar de forma inteligente", dentro de um quadro "independente e de imparcialidade" e com sentido pedagógico.

Para o responsável, a força de segurança tem que atuar, mas sempre garantido que as pessoas possam exercer a sua "cidadania plena".

"A segurança pública e os direitos humanos são compatíveis e complementares entre si e é neste logica que montámos o sistema, sem que as forcas de segurança sejam instrumentalizadas", concluiu o Comissário da POP.

Lusa, em Notícias ao Minuto

Guiné-Bissau. PAIGC volta a indicar Simões Pereira para primeiro-ministro




O PAIGC voltou a indicar ao Presidente da República da Guiné-Bissau o nome de Domingos Simões Pereira para primeiro-ministro, quatro dias depois de o chefe de Estado o ter demitido.

Eram 14:30 quando um oficial dos serviços do secretariado do partido se apresentou na secretaria-geral da Presidência com a carta do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), disse à Lusa fonte daquela força política.

"Formalmente o partido já deu a conhecer ao senhor Presidente qual a sua decisão", acrescentou.

A carta refere que "à luz do número 1 do artigo 40.º dos estatutos do PAIGC, o presidente do partido é o cabeça-de-lista às eleições legislativas e, em caso de vitória, é ele o candidato a primeiro-ministro, chefe do Governo", referiu.

O Presidente da República, José Mário Vaz, demitiu na quarta-feira o Governo liderado por Domingos Simões Pereira, apesar dos apelos lançados dentro e fora do país para que não o fizesse.

O Executivo estava em funções há um ano, depois de o PAIGC vencer as eleições com maioria absoluta e de ter recebido duas moções de confiança aprovadas por unanimidade no Parlamento - para além de ter o apoio da comunidade internacional.

Depois da demissão e nos termos da Constituição, Vaz pediu ao PAIGC na qualidade de partido vencedor das últimas eleições que indicasse um nome para primeiro-ministro.

Lusa, em Notícias ao Minuto

Brasil. O PERSISTENTE BULLING MIDIÁTICO SOBRE O PT



Leonardo Boff*, Rio de Janeiro – Correio do Brasil, opinião

É urgente desmascarar os interesses anti-populares e frear o avanço dos conservadores que querem voltar ao poder mediante um golpe.

Há um fato inegável que após a reeleição da presidenta Dilma em 2014 irrompeu muita raiva e até ódio contra o PT e o atual governo. Atesta-o um ex-ministro do partido da oposição, do PSDB, Bresser Pereira, com estas contundentes palavras:

“Surgiu um fenômeno que eu nunca tinha visto no Brasil. De repente, vi um ódio coletivo da classe alta, dos ricos, contra um partido e uma presidente. Não era preocupação ou medo. Era ódio. Esse ódio decorreu do fato de se ter um governo, pela primeira vez, que é de centro-esquerda e que se conservou de esquerda. Fez compromissos, mas não se entregou. Continua defendendo os pobres contra os ricos. O ódio decorre do fato de que o governo revelou uma preferência forte e clara pelos trabalhadores e pelos pobres”(FSP 01/03/2015).

Este ódio foi insuflado fortemente pela imprensa comercial do Rio e de São Paulo, por um canal de TV de alcance nacional e especialmente por uma revista semanal que não costuma primar pela moral jornalística e, não raro, trabalha diretamente com a falsificação e a mentira. Esse ódio invadiu as mídias sociais e ganhou também as ruas. Tal atmosfera envenena perigosamente as relações sociais a ponto de que já se ouvem vozes que clamam pela volta dos militares, por um golpe ou por um impeachment.

Tal fato deve ser lamentado por revelar a baixa intensidade do tipo de democracia que temos. Sobretudo deve ser interpretado. Nem chorar nem rir, mas tentar entender.Talvez as palavras do ex-presidente Lula sejam esclarecedoras:

“Eles (as classes dirigentes conservadoras) não conseguem suportar o fato de que, em 12 anos, um presidente que tem apenas o diploma primário colocou mais estudantes na universidades do que eles em um século. Que esse presidente colocou três vezes e meia mais estudantes em escolas técnicas do que eles em 100 anos. Que levou energia elétrica de graça para 15 milhões de pessoas. Que não deixou eles privatizarem o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e os bancos do Espírito Santo, de Santa Catarina e do Piauí. Que nos últimos 12 anos nós bancarizamos 70 milhões de pessoas, gente que entrou numa agência bancária pela primeira vez sem ser para pagar uma conta. Acho que isso explica o ódio e a mentira dessas pessoas. Pobre ir de avião começa a incomodar; fazer faculdade começa incomodar; tudo que é conquista social incomoda uma elite perversa”(discurso no sindicato dos bancários do ABC no dia 24 de julho de 2015: Jornal do Brasil online de 25/07/2015).

Posso imaginar a enorme dificuldade que possuem as classes proprietárias com seus poderosos meios de comunicação de aceitar a profunda transformação que surgiu no país com o advento do PT, vindo de baixo, do seio daqueles que sempre estiveram à margem e aos quais se negaram direitos e plena cidadania. Como escreveu acertadamente  o economista Ladislau Dowbor da PUC de São Paulo:

”Eles querem a volta ao passado, a restrição das políticas sociais, a redução das políticas públicas, o travamento da subida da base da pirâmide que os assusta”. E acrescenta: “A máquina administrativa herdada foi feita para administrar privilégios, não para prestar serviços. E os privilegiados a querem de volta”(Carta Maior, 22/09/2015).

Efetivamente, o que ocorreu não foi uma simples troca de poder mas a constituição de uma outra base de poder, popular e republicana que deu centralidade ao social, fazendo com que o estado, bem ou mal, prestasse serviços públicos, incluindo cerca de 40 milhões de pessoas, fato de magnitude histórica.

Para entender o fenômeno do ódio social socorrrem-nos analistas da violência na história. Recorro especialmente ao pensador francês René Girarad(*1923) que se conta entre os melhores. Segundo ele, quando na sociedade se acirram os conflitos, o opositor principal consegue convencer os demais de que o culpado é tal e tal pessoa ou partido. Todos então se voltam contra ele, fazem-no de bode expiatório sobre  o qual colocam todas as culpas e corrupções (cf. Le bouc émissaire, 1982). Assim desviam o olhar sobre suas próprias corrupções e, aliviados, continuar com sua lógica também corrupta.

Ou pode-se atribuir aos acusadores aquilo que o grande jurista e politólogo alemão Karl Schmitt ( 1986) aplicava a todo um povo. Este para “garantir sua identidade tem que identificar um inimigo e desqualificá-lo com todo tipo de preconceito e difamação” (cf.O conceito do político,2003). Ora, esse processo está sendo sistematicamente feito contra o PT, um verdadeiro bullying coletivo. Com isso procura-se invalidar as conquistas populares alcançadas e reconduzir ao poder aqueles que historicamente sempre estigmatizaram o povo como jeca-tatu e ralé e ocuparam os aparelhos de estado para deles se beneficiar.

Distorce minha intenção quem pensar que com o que escrevi acima  estou defendendo os que do PT se corromperam. Devem ser julgados e condenados e, por mim, expulsos do partido.

O avanço do povo através do PT é precioso  demais para que seja anulado. As conquistas devem continuar e se consolidar. Para isso é urgente desmascarar os interesses anti-populares, frear o avanço dos conservadores que não respeitam a democracia e que almejam a volta ao poder mediante algum tipo de golpe.

*Leonardo Boff,  é filósofo, ecologista e escritor (na foto)

Brasil. Amazônia perde mais 5 mil Km² de floresta e ministro celebra



Correio do Brasil, com ABr – de Brasília

O desmatamento na Amazônia Legal diminuiu 15% entre agosto de 2013 e julho de 2014 em relação aos 12 meses anteriores, embora mais de 5 mil Km² de florestas nativas tenham sido derrubados. Os dados são do Projeto de Monitoramento da Floresta Amazônica por Satélites (Prodes), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e foram divulgados véspera, em Brasília, em entrevista à imprensa dos ministros da Ciência, Tecnologia e Inovação, Aldo Rebelo, e do Meio Ambiente, Izabella Teixeira.

De acordo com a taxa consolidada pelo Inpe, a área desmatada no período 2013/2014, foi de 5.012 quilômetros quadrados (km²), comparados aos 5.891 km² desmatados em 2012/2013. O ministro Aldo Rebelo disse que entre 2004 e 2014, a taxa anual de desmatamento da Amazônia Legal caiu de 27.772 km² para 5.015 km², uma redução de 82%.

– É uma demonstração, uma ostentação de êxito da política ambiental do país que deve ser, mais que registrada, celebrada – diz Rebelo.

Os Estados que mais frearam a destruição da floresta em relação ao período anterior foram o Maranhão (36%), Tocantins (32%) e Rondônia (27%). Os estados que mais desmataram no último período foram o Acre (40%), o Amapá (35%) e Roraima (29%). Amazônia Legal é formada pelos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, de Mato Grosso, do Pará, de Rondônia, Roraima e do Tocantins.

Para chegar à taxa consolidada, o instituto mapeou 214 imagens do satélite de observação terrestre Landsat 8. O Prodes computa como desmatamento áreas maiores que 6,25 hectares com corte raso de floresta primária, ou seja, quando há remoção completa da cobertura florestal.

A ministra Izabella Teixeira explicou que o monitoramento do Prodes ainda não diferencia o desmatamento ilegal e legal, autorizado em propriedades rurais de acordo com regras do Cadastro Ambiental Rural, previsto no Código Florestal. Por falta de informações dos estados responsáveis pelo Cadastro, o governo federal não consegue sobrepor as áreas desmatadas com as áreas que têm autorização dos estados para o corte de vegetação nativa.

Segundo a ministra, o ministério acaba de firmar um acordo com o governo do Acre para que o estado seja o primeiro a disponibilizar para o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) os dados do estado.

– Vai ser o primeiro Estado que vai integrar a informação do que estão autorizando retirar. Em dez dias, até duas semanas, o Ibama deve receber as informações. Vamos cruzar esses dados e entender na dinâmica do território o que é legal e o que é ilegal ou sem autorização – disse.

Teixeira destaca, ainda, que uma das justificativas para o aumento da área desmatada no estado são as políticas públicas para assentamentos rurais.

Após a divulgação dos dados do Prodes, a presidenta Dilma Rousseff usou a rede social para dizer que o Brasil vai chegar ao desmatamento ilegal zero na Amazônia Legal. Por meio do Twitter, ela comentou aredução de 15% no desmatamento entre 2013 e 2014, comemorando o fato de a taxa ter sido a segunda menor da série histórica.

“Para um país continental como o Brasil, uma meta de redução é muito importante, e chegaremos ao desmatamento ilegal zero na Amazônia Legal. Este é mais um passo no nosso compromisso de preservação do meio ambiente e de reflorestamento de áreas degradadas’, escreveu a presidenta.

COMO TERMINAM AS VIDAS SEM VALOR




Chacina brutal na Grande S.Paulo demonstra: Estado “democrático” brasileiro mata como a ditadura — mas comoção é menor, porque vítimas são apenas “corpos supérfluos”
  
Liliana Sanjurjo e Gabriel Feltran – Outras Palavras

Guerra às drogas”, “guerra ao crime”, “guerra contra a subversão”, “guerra ao terror”. Palavras de ordem na contemporaneidade. A lógica guerreira da militarização vem pautando as políticas desegurança nacional e, mais recentemente, as políticas de segurança pública em diversos países do mundo (1). Especialmente no contexto latino-americano, tanto no passado ditatorial recente quanto na presente forma democrática, observa-se como distintos governos, por meio dos sujeitos e instituições que os constituem, colocam em ação enunciados valorativos a fim de justificar, sobretudo moralmente, as políticas estatais de segurança e os atos repressivos perpetrados contra aqueles categorizados como seus “inimigos internos”. A política é a cada dia mais guerreira, a fronteira que define o inimigo é cada vez mais moral e ele está cada vez mais próximo. O conflito precisa ser administrado.

Compreendendo governo como uma esfera que reivindica os sentidos – existenciais, políticos e morais – que justificam a vida e a morte de sujeitos, individuais ou coletivos (2), buscamos analisar aqui como são atualizados os dispositivos de gestão da vida e, a partir deles, da ordem social que se construía em nossos contextos etnográficos, ambos muito marcados pela morte violenta. Gestão, portanto, que tem o assassinato como possibilidade mais ou menos presente e que culmina em processos de categorização, hierarquização e construção de fronteiras sociais (3).

Nesse sentido, em consonância com as reflexões de Butler (4) sobre a questão da violência, do luto e do reconhecimento da vida, problematizamos as circunstâncias, mas sobretudo as perspectivas, em que certas vidas são lamentadas, choradas e dignas de luto em público, enquanto outras não o são. A estas últimas vidas a comunidade nacional oferece o silêncio, ora porque são entendidas como animando os corpos que devem tombar numa “guerra justa” (eram terroristas, delinquentes, subversivos, traficantes, do crime organizado); ora porque compreendidas como externas ao sentido de pertencimento a qualquer humanidade comum (eram monstros, veja o que fizeram, nem animais o fariam).

Distintas formas de discurso (do jurídico ao científico, do jornalístico ao acadêmico) produzem o “excluído”, os corpos deslocados da humanidade, considerados então pelo poder como desimportantes, supérfluos, as vidas que deveriam ser corrigidas ou que não mereceriam ser vividas. O lugar desse “excluído” seria de silêncio, que, concretamente, se realiza na sensação de injustiça por não poder existir socialmente, não gozar de qualquer interesse por parte do mundo, por habitar uma vida condenada à morte silenciosa. Este artigo quer analisar contextualmente as consequências políticas manifestas nas concepções normativas do humano que suspendem a validade da vida de sujeitos e grupos, produzindo uma multidão de “vidas sem valor” cujo estatuto político se encontra substantivamente suspenso, o que por vezes é acompanhado da perda do estatuto legal.

Partimos da experiência etnográfica específica em situações nas quais o Estado provoca a morte de seus “inimigos internos”, para refletir sobre as fronteiras da noção de humano, bem como sobre seus significados políticos contemporâneos. Por um lado, tomamos como objeto um estudo sobre desaparecimento forçado, violência e política no contexto da última ditadura militar argentina e, por outro, uma etnografia sobre crime, violência e política em São Paulo (5). Por meio desse deslocamento etnográfico temporal e espacial – a passado ditatorial argentino e presente da forma democrática brasileira –, esboçamos uma crítica que situa a violência de Estado contemporânea não como um desvio, mas como um instrumento chave para governar. O recorte moral do conjunto da população nos termos da guerra do bem contra o mal favorece a implementação de projetos político-econômicos específicos, mas se faz centralmente em nome da segurança pública ou segurança nacional.

Por um lado, analisamos a construção pública e conjuntural das grades de inteligibilidade que permitem a justificação de medidas letais, legais ou ilegais de “combate ao crime”, “guerra às drogas”, “luta contra a subversão”, “defesa nacional”. Por outro lado, verificamos as estratégias empreendidas por atores sociais incriminados para reagir à violência de Estado, tornar visíveis seus mortos e construir a sua posição pública como sujeitos legítimos de participação no espaço político ou, quando não, como sujeitos aptos a disputar o poder. Colocamos assim em diálogo as nossas etnografias para questionar a adjetivação dicotômica das violências (violência criminal, violência política), colocando-as em relação. Problematizamos a diferença de lugares de locução ocupados por familiares de desaparecidos políticos e por residentes das periferias da cidade, perante a violência sofrida. Verificamos que seus modos de reivindicar o direito à vida de seus semelhantes são submetidos a condições de legitimação discursiva completamente diferentes. Que suas estratégias e crenças são, por isso, fundamentalmente distintas. Recortes na distribuição efetiva de “direitos” aparecem, então, condicionando o direito ao estatuto de locução pública, garantia de existência política, sinônimo de humanidade.

Essas condições de locução nos levam, então, a uma reflexão sobre o Estado e as formas de uso contemporâneo da violência estatal, realizada na segunda parte do texto. Os contrastes entre os contextos etnográficos em que estudamos essas questões, apresentadas em linhas gerais a seguir, funcionam aqui mais para elaborar nosso próprio ponto de observação das relações entre política e violência, do que para construir nossos objetos de estudo. Ditadura argentina e democracia brasileira serão, assim, representações a partir das quais se pode ensaiar uma reflexão crítica sobre as relações entre política e violência.

Violência de Estado na ditadura argentina: da luta pelo luto e pela memória

Foi pela violência perpetrada contra a população civil que a última ditadura militar argentina (1976-1983) se tornaria conhecida. Dentre os métodos empregados para a imposição do terror, destaca-se a política de desaparecimento forçado daqueles definidos pelas autoridades como “terroristas”, “delinquentes subversivos” e “inimigos da nação”. As autoridades militares justificariam o golpe de Estado alegando que as forças armadas eram a única instituição capaz de “restaurar” os “verdadeiros valores da nação” e a cultura “ocidental e cristã”. Os militares se apresentavam assim como combatentes de uma “guerra” travada “em nome de Deus”, pela “defesa nacional” contra o “beligerante inimigo subversivo” e o “ateísmo marxista” (6).

Combinando discurso religioso a metáforas do parentesco, da guerra e da biologia para fundamentar a repressão, a “subversão” emergia na retórica da ditadura como “câncer” que deveria ser eliminado para não “contaminar” o “organismo nacional” (7). Além do mais, interpretando a “guerra contra a subversão” no marco da Doutrina de Segurança Nacional junto ao conceito de “guerra total” da doutrina contrainsurgente francesa, o discurso militar embaralhou as fronteiras que distinguiam o nacional do forâneo, ao passo que o conflito era definido em termos de uma guerra interna. Da perspectiva militar, tratou-se de uma “guerra justa”, porém uma “guerra irregular” cujo signo distintivo teria sido a “imprecisão”. Atos atrozes continuariam sendo assim justificados como sequelas, excessos, imprecisões ou equívocos (fatos supostamente inevitáveis às guerras) cometidos no contexto de uma ação legítima.

Fica evidente como, no contexto ditatorial, “subversão” foi a categoria englobante utilizada para delimitar as fronteiras de pertencimento à nação. Na conjuntura de então, marcada pelo capitalismo industrial e pela Guerra Fria, momento em que a polarização capitalismo X socialismo se impunha como conflito predominante, a figura do “delinquente subversivo” surgia como identidade dissonante da ordem social. Nessa operatória, o governo ditatorial criminalizava a oposição política, produzindo uma nova categoria de pessoa, os detenidos-desaparecidos, que, deslocados da humanidade porque concebidos como ameaçando os valores mais centrais da vida humana, eram condenados à morte silenciosa; vidas proibidas de existir para a preservação dos princípios da dignidade humana (a família, a tradição, a ordem, a religião), mortes por isso destituídas de identidade (8) e privadas do direito ao luto. Encarcerados em prisões clandestinas, os desaparecidos eram deslocados da vida social, perdendo o seu estatuto político e legal. Excluídos dos sistemas de inscrição da morte (cadáveres sem nome e sem história) (9), os desaparecidos eram deixados de fora do relato da nação, da comunidade política, apostando na impossibilidade da memória pela ausência do corpo (10).

Contudo, enquanto a ditadura buscava negar a existência dos desaparecidos, Madres de Plaza de Mayo e outros coletivos de familiares das vítimas se organizavam para mostrar que os desaparecidos tinham um rosto, um nome e uma história. Esses coletivos emergem na cena pública colocando suas demandas por “Memória, Verdade e Justiça” em linguagem de parentesco e de direitos humanos. Após décadas de incessante ativismo, os familiares de desaparecidos (e os próprios desaparecidos) marcam o seu lugar na vida política do país e as violações cometidas durante a ditadura dificilmente encontram respaldo social, ao passo que o evento crítico do desaparecimento forçado afirma-se como acontecimento político nacional (11). Observa-se ainda um processo de luto permanente pelos “30 mil detenidos-desaparecidos” e de reelaboração de sua memória na esfera pública, questão central que motivou a etnografia realizada por Liliana Sanjurjo; ou seja, compreender os processos que levariam os desaparecidos e as memórias da ditadura a ganhar tamanha repercussão social na Argentina contemporânea.

Cabe salientar que foi por meio de uma série de disputas políticas, simbólicas e jurídicas, na qual se encontram empenhados há mais de 30 anos, que esses coletivos de familiares foram adquirindo legitimidade social, consolidando publicamente um conjunto de representações sobre o passado ditatorial. Puderam assim converter (e pode-se dizer com eficácia) o estigma imposto às vítimas e seus familiares durante a ditadura em capital político no período democrático. A análise da trajetória de mobilização desses familiares e de significação da categoria detenidos-desaparecidos (12) – cujo percurso parte da negação de sua existência e culmina na sua reivindicação como grupo portador de um projeto político – revela como diferentes conjunturas históricas possibilitam, por um lado, que determinados agentes possam se construir como sujeitos legítimos de participação no espaço político e, por outro lado, que novos sentidos sejam atribuídos ao passado de violência.

Se durante a década de 1980 os familiares buscaram despolitizar a questão dos desaparecidos (13), atualmente se empenham precisamente em demonstrar o que faziam as vítimas politicamente para que fossem transformadas em alvo da repressão. Ou melhor, se no período de transição democrática as histórias de militância dos desaparecidos se viram silenciadas, esse silêncio deve ser lido em face a um contexto de alta adesão aos discursos que justificavam a violência letal. Para não integrar a alteridade negativa da ditadura (subversão), a denúncia da repressão perderia o seu contorno político-ideológico, dando lugar à construção de uma narrativa humanitária que convertia os desaparecidos em “vítimas de graves violações aos direitos humanos”.

Foi somente na segunda metade da década de 1990 que a memória dos desaparecidos começaria a ser definida em termos políticos, sendo agora reconhecidos como seres produtores de política (militantes populares, socialistas, revolucionários), assassinados pelos projetos políticos que encarnavam. Contemporaneamente, haveria ainda uma vontade de categorização (genocídio por razões políticas, terrorismo de Estado), que se articula no campo jurídico com a produção de um discurso de verdade (14). A argumentação se dirige então a comprovar que o Estado teria executado um plano sistemático de tortura e extermínio contra um grupo específico da população nacional, definido previamente segundo critérios políticos.

Por último, vale salientar que esse processo de crescente politização do relato da ditadura se dá numa conjuntura de crise da política neoliberal menemista – caracterizada pelo desemprego, precarização do trabalho e dos serviços de proteção social e, o mais importante, quando a violência de Estado já tem como foco prioritário outros grupos criminalizados (os pobres). Essa nova conjuntura, bem como o lugar social ocupado pelos coletivos de familiares de desaparecidos – constituídos, de uma maneira geral, por setores médios que, desde o princípio, já contavam com o capital social necessário para articular ações no plano nacional e internacional –, parecem assim marcar uma diferença fundamental para a construção de sua posição pública como sujeitos legítimos de participação no espaço político, garantindo o direito ao estatuto de locução pública. Ao gozarem de existência política, puderam reagir à violência de Estado, tornar visíveis seus mortos, bem como responsabilizar penalmente os agentes do Estado implicados na repressão.

Violência de Estado na “democracia brasileira”: mortos sem luto, luta sem virtude

São também muitas as mortes e desaparições forçadas no contexto das periferias das cidades brasileiras, em período “democrático”. Em São Paulo, a questão central que mobilizou a etnografia conduzida por Gabriel Feltran, no distrito de Sapopemba, remetia ao silêncio público em torno dos homicídios de adolescentes e jovens nas favelas, nos anos 1990 e início dos anos 2000. Embora pesquisando regiões muito marcadas pela mobilização de movimentos populares – por saúde, moradia, transporte, educação – a temática da morte violenta de milhares de jovens, muitos deles trabalhadores de mercados ilegais como o da droga ou do roubo de carros, parecia não causar comoção aos movimentos sociais de trabalhadores do período. Restavam apenas as páginas policiais para publicizá-las. Os anos de etnografia foram tempos em que se solicitou nas rádios e televisões, nos comentários de notícias pela internet, progressivamente, e cada vez mais, que a repressão contra os pobres e seus territórios se radicalizasse: era preciso combater o crime que brotava de favelas e periferias. A justificação dessa premissa é moral, não precisa de argumentos.

As denúncias de homicídios estudadas nessa etnografia não tiveram seguimento jurídico e foram recebidas, publicamente, com indiferença ou silêncio. Os poucos que tentavam traduzir essas mortes em luta, militantes de direitos humanos, eram logo acusados de “defender bandido”. Direitos humanos para humanos direitos! Direitos humanos para bandidos? Ambas as violências – tanto a remetida aos corpos de jovens favelados que tombavam pela polícia ou seus pares, quanto a que se dirige à fala de militantes que os representariam (15) – foram predominantemente legítimas, nos meios públicos e em muitas famílias de periferia.

A surpresa dessa etnografia, no entanto, foi constatar que, conforme corria a pesquisa de campo nos anos 2000, eram cada vez mais raros os homicídios de jovens nas favelas de São Paulo. Nos anos 2000, o Primeiro Comando da Capital (PCC) implementava um sistema de justiça em todos os presídios e favelas, interconectado, que, em 2011, havia reduzido os homicídios nesses lugares em dez vezes. No conjunto da cidade, a queda foi de mais de 70% das mortes por armas de fogo, embora os latrocínios subissem no período. A queda dos assassinatos nas periferias de São Paulo, durante os anos 2000, não tinha como causa decisiva a redução das atividades criminais, mas seu oposto, a muito maior capilaridade da facção criminal, que instrumentalizava as políticas repressivas em curso, sobretudo o encarceramento massivo (16). O PCC passava a intermediar inúmeras situações de conflito local, em favelas e periferias, tendo por mote central evitar o homicídio de jovens e a interdição de vendetas entre eles, de modo a pacificar os mercados que regulava (drogas, carros roubados, assaltos, entre outros). O sistema foi bem sucedido, já está bem descrito na bibliografia (17). De um lado, morrem menos de um décimo dos jovens que morriam dez anos antes, nas periferias de São Paulo; de outro, o “crime” – e não um movimento com virtudes democráticas – parece ser o ator central de regulação da vida e da morte nas periferias.

Situar-se politicamente frente a essa constatação leva a um paradoxo. Propõe-se a chave interpretativa de coexistência de regimes normativos nesses territórios, seguindo a hipótese de Machado da Silva (18). Crime e Estado compõem ali ordens legítimas que, em suas tensões e acomodações, produzem um dispositivo de ordem urbana composto entre políticas estatais e criminais, responsável hoje pela especificidade paulista na questão da “segurança pública”. Todos os dados quantitativos elencados na bibliografia, bem como o cenário cíclico de tensões entre esses regimes normativos, em 2001, 2006 e 2012, corroboram esta hipótese analítica, hoje legítima na bibliografia.

Se um favelado é assassinado, essa morte não será investigada pelo Estado, não se montará um inquérito judicial. O PCC vai, entretanto, intermediar debates locais sobre o caso, com minúcia, para conhecer os fatos e as versões, para julgar os culpados, e no limite para implementar a justiça. Se um branco é morto em um assalto, não se aplica a ele a justiça do PCC, ela o ignora. O Estado cuidará do caso. Há uma fronteira entre esses dois regimes que define, entre outras coisas, o que é um homicídio em cada perspectiva e, portanto, os limites do humano em cada um dos regimes. O desenvolvimento histórico dessa fronteira não é infenso a tensões, evidentemente. Em São Paulo, e em outras periferias urbanas brasileiras, o emprego rotineiro da violência ilegal como modo de arbítrio dos conflitos sociais que condicionam essas tensões, tanto pelo “mundo do crime”, quanto pelo Estado, indica a dimensão mais constitutivamente arraigada da violência no funcionamento democrático brasileiro.

Sobre lutos e lutas: da distribuição desigual do reconhecimento da vida

Já não é surpreendente que o recurso à violência institucional, que se julgava próprio das ditaduras militares – tanto a violência massivamente aplicada a populações consideradas ameaçadoras, quanto seletivamente voltada às vozes dissonantes – seja também instrumento fundamental da forma de governo contemporaneamente conhecida como democracia (19). Diferentes trabalhos vêm demonstrando a presença da chamada “violência política” nas democracias, seja na construção ativa de inimigos internos, seja na ação direta que os transforma em população e os criminaliza, para em seguida deslocá-los, expulsá-los, encarcerá-los ou mesmo exterminá-los como parte de procedimentos administrativos (20). Pela representação sinonímica entre a noção de democracia e os atuais regimes ocidentais ter atingido hoje validade quase absoluta, seja no senso comum, seja em boa parte da bibliografia, utilizamos a categoria “violência de Estado” para nos referirmos aos atos violentos, seja legalizados ou francamente ilegais, que se produzem como modo de sustentar uma fronteira no acesso ao “direito a ter direitos”, ou seja, uma fronteira que reivindica uma clivagem, quase sempre figurada no plano da natureza, entre os que pertencem à comunidade política e por isso devem ser protegidos, daqueles que a ameaçam e devem ser combatidos. É exatamente nessa medida – a da violência de Estado – que os desaparecimentos forçados na Argentina e o assassinato de jovens favelados nas periferias de São Paulo, que estudamos nas nossas etnografias recentes, podem ser colocados em perspectiva. Inúmeras outras situações nacionais contemporâneas – a começar por Estados Unidos e Europa em sua guerra ao terror, passando pela “reconstrução estatal” na América Latina e África – revelam a fabricação ativa de inimigos internos como baliza cognitiva para se pensar normativamente a ordem social.

Nessa medida, um contraste fundamental entre nossos casos se explicita. A temática do desaparecimento forçado se tornou, na Argentina, assunto político de primeira ordem e os movimentos que o denunciavam foram progressivamente se tornando vozes mais legítimas publicamente. Seus argumentos se fizeram ouvir nacional e internacionalmente, sua presença funcionou para demarcar as balizas do discurso político oficial na transição democrática e resta ainda hoje muito viva. A memória da ditadura se reconstruiu, entre familiares de vítimas, mas também entre as gerações mais recentes e os atores públicos contemporâneos, como memória de injustiça e de dor que não se pode esquecer. A criminalização, extermínio e desaparecimento de milhares de pessoas ofereceu a oportunidade para um luto coletivo, vivido como luta intensa, que foi se legitimando publicamente pouco a pouco, ainda que os movimentos jamais tenham obtido satisfação de todas as suas demandas.

No caso brasileiro contemporâneo, a violência de Estado voltada contra grupos de favelas e periferias, centrada na criminalização seletiva, tem produzido um tipo de clivagem social que se encaminha muito mais para a alteridade radical do que para a possibilidade de legitimação do discurso divergente. A tendência contemporânea não é, por exemplo, de que o discurso e as demandas de grupos no foco das estatísticas de homicídio sejam enunciados publicamente e cresçam em capacidade de legitimação pública. Por isso, toda a grade de inteligibilidade, ou seja, os critérios pelos quais se reivindica sentido para o discurso enunciado pelos sujeitos, teve de ser alterada. Em São Paulo, esses discursos foram, por exemplo, muito mais elaborados nas favelas pelos debates internos ao Primeiro Comando da Capital, uma facção criminal, do que nos debates públicos vinculados aos setores estatais responsáveis por direitos humanos ou segurança pública. As grandes medidas de controle da violência policial, ao longo dos anos 2000, foram produzidas pelo próprio “mundo do crime” (21). Assim, as principais caixas de ressonância para a reflexão e a crítica da violência de Estado mantiveram-se num mundo progressivamente mais afeito aos próprios sujeitos criminalizados das favelas, codificado internamente entre eles, do que foram ouvidas publicamente. Mundo que, assim, foi progressivamente se autonomizando frente à grade de inteligibilidade política estatal, centrada normativamente no direito universal. Com isso, de um lado, se constituíram regimes normativos – o do “crime” é bastante evidente, conforme já demonstrou há quase duas décadas Luiz Antonio Machado da Silva (1999), que coexistem com os estatais; de outro lado, e como reação a esse processo, esses regimes passaram a alimentar o ciclo de criminalização que, justamente, os havia produzido. Essa tendência, ao contrário do que se passou na Argentina, já impede definitivamente qualquer possibilidade de legitimação política do discurso democrático contra a violência de Estado, tanto quanto a legitimação política dos atores inscritos nas tentativas de controlá-la fora dos marcos legais. Enquanto na Argentina o movimento de familiares de desaparecidos põe em relevo a identidade política das vítimas (a definição do “inimigo” teria sido diretamente “política”), no Brasil as Mães de Maio e outros coletivos de familiares de vítimas da violência policial buscam enfatizar o critério racial (negros), de classe (pobres) e territorial (periferias) da repressão perpetrada. Talvez esteja aí a chave para perceber porque os ganhos entre esses movimentos sejam tão díspares.

Dessa perspectiva, o que se poderia chamar de ação política – a construção ativa de terrenos de locução legítima em um espaço público, operada cotidianamente pelos sujeitos sociais – definitivamente não fica restrita, no caso brasileiro, às disputas entre sujeitos já constituídos (movimentos, partidos, sindicatos etc) que se encontram em terrenos de negociação de poder definidos em consenso (conselhos, assembleias, fóruns de participação ou representação social estatais). Essa ação potencialmente política vai se assentar, justamente, na disputa acerca da constituição desses mesmos terrenos e sujeitos: os militantes das periferias precisam primeiramente se forjar enquanto sujeitos, transpondo fronteiras impostas pela gestão e pela violência, para serem ouvidos. Os bandidos das favelas paulistas, que se reúnem para tentar impedir o aumento de homicídios de jovens nas “quebradas”, jamais terão voz pública nos debates sobre esses temas. Nem seu léxico permitiria que sua voz fosse aí compreendida como fala articulada. Por não existir como tal, a mediação entre o “mundo da favela”, cada vez mais criminalizado, e o mundo político instituído, já não pode se consolidar. A fronteiras que são demarcadas nas margens da política sustentam, assim, a restrição da legitimidade de grupos inteiros situados às margens da cidade. Moraliza-se de tal forma os espaços que se poderia politizar que os moradores desses territórios, ao invés de serem considerados cidadãos pela universalidade da noção de direitos, se esforçam de maneira permanente para provar que são pessoas de bem, honestas, trabalhadoras, confiáveis, pacíficas, que não possuem relação com “o tráfico”.

Nesse sentido, torna-se interessante atentar para a importância de entender as particularidades da violência de Estado definida em termos “políticos”, ou da violência perpetrada contra grupos definidos em termos “políticos”, na medida em que as distintas formas a partir das quais as vítimas e as violências são adjetivadas podem ser reveladoras das distintas funcionalidades das práticas de gestão da vida, da morte e da ordem social, em conjunturas específicas. Se é pelo adjetivo “política” que se define a violência de Estado perpetrada durante a ditadura, é porque se entende que essa violência se dirige àqueles que, de alguma forma, ainda são reconhecidos como atores políticos em referência a uma comunidade nacional. Quando um problema político como a violência de Estado no Brasil, ao contrário, é tratado nas páginas policiais, produz-se uma “massa de inúteis do mundo” nas dimensões internas às fronteiras nacionais que, em todas as épocas, impediu qualquer democracia substantiva. A reflexão sobre as mortes às quais fazem referência nossas etnografias, bem como sobre o luto público (ou a ausência de luto) em torno desses mortos, nos leva então a questionar, seguindo Butler (22), em que medida essa distribuição desigual da dor – que determina quais vidas contam como vidas e quais mortes são dignas de lamento público – produz e reitera certas concepções normativas do humano, delimitando as fronteiras de pertencimento à comunidade política e, por conseguinte, “do direito a ter direitos”.

Notas e referências bibliográficas
1. Optamos pelas grafias em itálico das expressões segurança nacionale segurança pública (poderíamos acrescentar aqui violência urbana) para enfatizar que partimos da premissa, seguindo Machado da Silva e Misse, de que não tomamos tais noções como categorias analíticas, mas sim como representações. Ou melhor, essas noções se constituem como categorias de entendimentos que conferem sentido à experiência de vida nas cidades, consolidando representações que são chave para a compreensão de práticas e relações às quais elas se referem. O intuito é preservar o vínculo entre segurança nacional esegurança pública como temas de agenda pública (como problema social em debate), por um lado, e como representação coletiva, por outro.Ver: Machado da Silva, L. A. Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Faperj/Nova Fronteira. 2008; Misse, M. Crime e violência no Brasil contemporâneo: estudos de sociologia do crime e da violência urbana. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2006; Wacquant, L. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar. 2011.
2. Feltran, G. S. “A gestão da morte nas periferias de São Paulo: um dispositivo entre governo e crime (1992-2011)”. In: Souza Lima, A. & García-Acosta, V. (Orgs.). Margens da violência: subsídios ao estudo do problema da violência nos contextos mexicano e brasileiro. Brasília: ABA. 2014.
3. Para uma reflexão acerca de como categorias sociais, políticas e administrativas (tais como “favelados” e “refugiados”) geram processos de distinção e hierarquização, materializando processos de produção de desigualdades diversas por meio de expedientes administrativos do Estado, ver neste Núcleo Temático da revista Ciência e Cultura o trabalho de Vianna e Facundo.
4. Ver: Butler, J. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós. 2006; Butler, J. Marcos de guerra. Las vidas lloradas. Buenos Aires: Paidós. 2010.
5. O artigo é resultado de trabalhos de campo realizados pelos autores na Argentina e no Brasil, entre 2004 e 2014, que resultaram nas seguintes teses: Feltran, G. S. “Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo”. São Paulo: Editora Unesp/CEM-Cebrap. 2011; Sanjurjo, L. “Sangue, identidade e verdade: memórias sobre o passado ditatorial na Argentina”. Tese (doutorado em antropologia social) – PPGAS, Universidade Estadual de Campinas. 2013. As pesquisas foram financiadas pelo CNPq e Fapesp, respectivamente.
6. Declaração do capitão da marinha Jorge Acosta durante audiência judicial da Causa ESMA, em 20 de outubro de 2011, no Tribunal Federal de Buenos Aires. Acosta (condinome “Tigre”) integrou o Grupo de Tarea 33.2 da Escuela Mecânica de la Armada (ESMA), um dos principais centros clandestinos de detenção, tortura e extermínio em funcionamento durante a ditadura militar argentina.
7. Filc, J. Entre el parentesco y la política: familia y dictadura 1976-1983. Buenos Aires: Biblos. 1997.
8. Crenzel, E. La historia política del nunca más. La memoria de los desaparecidos en la Argentina. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores. 2008.
9. Calveiro, P. Poder y desaparición. Los campos de concentración en Argentina. Buenos Aires: Colihue. pp. 143. 2008.
10. Schindel, E. “Las ciudades y el olvido”.In: Puentes. La Plata, Ano 2, No. 7, p. 30. julho de 2002.
11. O desaparecimento forçado de pessoas pode ser entendido aqui a partir da noção de evento crítico de Veena Das: Das, V. Critical Events. An anthropological perspective on contemporary India. New Dheli/ Oxford: Oxford University Press. 1995.
12. Para uma análise que trata das disputas em torno dos sentidos da categoria desaparecidos, ver: Vecchioli, V. “Políticas de la memoria y formas de clasificación social. Quiénes son las víctimas del terrorismo de Estado en la Argentina?”. In: Groppo, B. & Flier, P. (Orgs.). La imposibilidad del olvido: recorridos de la memoria en Argentina, Chile y Uruguay.La Plata: Ediciones Al Margen. 2001.
13. Para uma discussão sobre a despolitização do relato sobre a ditadura argentina no período de transição democrática, ver: Crenzel, E, op. cit. 2008; Feld, C. Del estrado a la pantalla: las imágenes del juicio a los ex comandantes e Argentina. Madrid: Siglo XXI de España Editores. 2002; Jelin, E. “La justicia después del juicio: legados y desafíos en la Argentina postdictatorial”. In: Fico, C., Ferreira, M. & Quadrat, S. (Orgs.). Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV. 2008.
14. Foucault. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora. 1996.
15. A expressão “violência política” se refere, usualmente, a um tipo específico de uso da força dirigido àqueles indivíduos que portam conjuntos de valores, crenças ou projetos políticos contrários ao programa político oficial, ou dominante. Em regimes autoritários a violência política é computada entre as formas de exercício legítimo da força, nos Estados democráticos ela é sempre ilegal. Essa violência tenta manter fora da arena pública não apenas o sujeito a quem se dirige, mas também aqueles os quais suas palavras representariam. Esta modalidade violenta se diferencia de outras formas de uso da força, por ser centralmente dirigida à locução política, às palavras, e não apenas aos corpos dos indivíduos que a sofrem (matá-los tem por função estrita silenciá-los).
16. Feltran, G.S. “Margens da política, fronteiras da violência: uma ação coletiva das periferias de São Paulo”. In: Lua Nova, 79. 2010; Feltran, G.S. “The management of violence on the periphery of São Paulo: a normative apparatus repertoire in the PCC era”. In: Vibrant, 7. 2010; Feltran, G.S. “Governo que produz crime, crime que produz governo. O dispositivo de gestão do homicídio em São Paulo (1992-2011)”. In: Revista Brasileira de Segurança Pública, 6. 2012.
17. Ver: Biondi, K. Junto e misturado: uma etnografia do PCC. São Paulo: Terceiro Nome/Fapesp. 2010. Biondi, K. e Marques, A. J. “Memória e história em dois comandos prisionais”. In: Lua Nova, 79. 2010; Dias, C.C.N. “Da pulverização ao monopólio da violência: expansão e consolidação da dominação do PCC no sistema carcerário paulista”. Tese (doutorado em sociologia). Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Universidade de São Paulo. 2011; Hirata, D.V. “Sobreviver na adversidade: entre o mercado e a vida”. Tese (doutorado em sociologia). Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Universidade de São Paulo. 2010.
18. Machado da Silva, L.A. “Criminalidade violenta: por uma nova perspectiva de análise”. In: Revista de Sociologia e Política, 13. 1999.
19. Críticas ao potencial democrático da democracia liberal, baseadas na sua dependência da forma empresa, já foram enunciadas em: Lindblom, C. E. Política e mercados: os sistemas políticos e econômicos do mundo. Rio de Janeiro: Zahar Editores. 1979. Feltran, op. cit.
20. Araújo, F. “Das consequências da ‘arte’ macabra de fazer desaparecer corpos: violência, sofrimento e política entre familiares de vítima de desaparecimento forçado”. Tese de doutorado. PPGAS/IFCS/UFRJ. 2012; Vianna, A. e Farias, J. “A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional”. In: Cadernos Pagu, 37. 2011; Hirata, .V. op. cit. 2010.
21. Feltran, G.S, op. cit. 2012.
22. Butler, J., op. cit. 2006.

Publicado originalmente na revista Ciência e Cultura, vol.67 no.2 São Paulo abr./jun. 2015, edição temática sobre deslocamentos organizada por Bela Feldman-Bianco.

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