Ciro
Barros, Giulia Afiune e ICIJ
Na
última década, pelo menos 3,4 milhões de pessoas sofreram os impactos negativos
de projetos financiados pela instituição cujo objetivo é acabar com a pobreza
Por
Sasha Chavkin, Ben Hallman, Michael Hudson, Cécile Schilis-Gallego e Shane
Shifflett
Com
colaboração de Musikilu Mojeed, Besar Likmeta, Ciro Barros, Giulia Afiune,
Anthony Langat, Jacob Kushner, Jeanne Baron, Barry Yeoman e Friedrich
Lindenberg - em Envolverde
Debaixo
de um céu branco e sombrio, mais de cem policiais armados entraram na favela de
Badia East, localizada na fervilhante megacidade de Lagos, Nigéria. Enquanto
avançavam, eles batiam os cassetetes contra as paredes desmoronadas dos
barracos nas ruas sem calçamento.
“Se
você ama sua vida, saia”, os oficiais gritavam.
Milhares
de pessoas agarraram os pertences que podiam carregar e fugiram antes que a
fila de enormes e desajeitadas escavadeiras entrasse com suas garras
hidráulicas esmagando as casas. Em questão de horas, o bairro estava em ruínas.
Bimbo
Omowole Osobe se perdeu por um momento de seus filhos em meio ao caos. Quando
ela voltou à comunidade, sua casa de blocos de concreto e suas duas pequenas
lojas tinham desaparecido. “É como uma mulher entrar em trabalho de parto e seu
bebê nascer morto”, diz ela. “Foi assim que eu me senti.”
Em
fevereiro de 2013, o governo estadual de Lagos destruiu Badia East porque
estava em uma zona de renovação urbana financiada pelo Banco Mundial, o
provedor global de empréstimos para combater a pobreza no mundo. Foi esse
projeto, porém, que, sem aviso nem compensação, expulsou os moradores pobres do
bairro em que viviam, obrigando-os a se defender sozinhos – e sem recursos – na
cidade superpovoada e perigosa.
Despejos
como o de Badia East supostamente não deveriam acontecer em projetos
financiados pelo Banco Mundial.
Durante
mais de três décadas, a instituição manteve um conjunto de políticas de
“salvaguarda” que eles diziam fazer parte de um sistema de desenvolvimento
econômico mais humano e democrático. Elas continuam teoricamente em vigor:
governos que tomam empréstimos ao banco não podem forçar a saída de pessoas de
suas casas sem aviso; famílias removidas para dar lugar a barragens, usinas de
energia e outros grandes projetos têm de ser reassentadas em condições de
recuperar os meios de sustento.
Segundo a instituição, seu compromisso é “não prejudicar” pessoas nem o meio
ambiente. O Banco Mundial quebrou sua promessa.
Ao
longo da última década, o banco falhou sistematicamente em fazer cumprir as
próprias regras, com consequências devastadoras para algumas das populações
mais pobres e vulneráveis do planeta. É o que revelou uma investigação conjunta
do International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ), Huffington
Post e outros veículos parceiros.
São
muitos os casos em que o Banco Mundial é negligente na análise prévia dos
projetos para garantir com antecedência que as comunidades estarão protegidas
e, frequentemente, não tem ideia do que acontece com pessoas após a remoção. De
acordo com funcionários e ex-funcionários do banco, em muitos casos a
instituição até continuou fazendo negócios com governos que já haviam
maltratado seus cidadãos, sinalizando que os clientes pouco têm a temer ao
violar as regras do empréstimo.
“Muitas
vezes não houve intenção dos governos de cumprir – e muitas vezes não houve
intenção da gerência do banco de fazer cumprir”, resume Navin Rai, um
ex-funcionário do Banco Mundial que supervisionou as medidas de proteção do
banco às populações locais entre 2000 e 2012. “Assim que o jogo era jogado.”
Em
março deste ano, após o ICIJ e o HuffPost terem informado a agentes do Banco
Mundial que haviam encontrado “falhas sistêmicas” na proteção da instituição a
famílias desalojadas, esta reconheceu que sua supervisão foi deficiente e prometeu
reformas. “Nós olhamos seriamente para nós mesmos no que diz respeito a
reassentamentos e o que descobrimos me preocupou muito”, disse em um
pronunciamento o presidente do Banco Mundial, Jim Yong Kim.
O
escopo do “reassentamento involuntário”, como classifica o banco, é vasto.
Conforme as estimativas obtidas em uma análise de dados da instituição feita
pelo ICIJ, os projetos do banco desalojaram física ou economicamente 3,4
milhões de pessoas desde 2004. Elas foram removidas de suas casas, expulsas de
suas terras ou tiveram seus meios de subsistência comprometidos.
Provavelmente
o número verdadeiro é ainda maior porque frequentemente o banco subestima ou
erra o cálculo do número de pessoas afetadas por seus projetos.
Uma
equipe formada por mais de 50 jornalistas de 21 países passou cerca de um ano
documentando o fracasso do banco em seu compromisso de proteger as pessoas
marginalizadas em nome do progresso. Os repórteres parceiros analisaram
milhares de documentos do Banco Mundial, entrevistaram centenas de pessoas e
fizeram investigações de campo na Albânia, Brasil, Etiópia, Honduras, Gana,
Guatemala, Índia, Quênia, Kosovo, Nigéria, Peru, Sérvia, Sudão do Sul e Uganda.
Nesses
países, e em outros, descobriram que o descaso do Banco Mundial prejudicou moradores
de favelas urbanas, lavradores, pescadores, populações tradicionais de
florestas e outras camadas pobres, obrigando-os a lutar para manter suas casas,
suas terras e seus modos de vida. Às vezes até enfrentando intimidação e
violência.
Entre 2004 e 2013, o Banco Mundial e seu braço de empréstimos para o setor
privado, a Corporação Financeira Internacional (International Finance
Corporation, IFC), comprometeram-se a emprestar US$ 455 bilhões para financiar
cerca de 7.200 projetos em países em desenvolvimento.
Durante
o mesmo período, as pessoas afetadas pelos investimentos do Banco Mundial e do
IFC apresentaram dezenas de reclamações aos painéis de inspeção internos das
instituições, acusando os emprestadores (seus clientes) por falhas no
cumprimento das regras de salvaguarda.
No
caso da favela de Lagos, o Painel de Inspeção – o órgão ombudsman do Banco
Mundial – afirmou que a direção do banco “ficou aquém na proteção aos pobres e
vulneráveis contra remoções forçadas”. Seus funcionários deveriam ter prestado
mais atenção ao que estava acontecendo em Badia East, ressaltou o Painel, dado o longo
histórico das autoridades de Lagos na destruição de favelas e na expulsão
forçada de pessoas de suas casas.
Um
ano após as remoções de Badia East, o banco emprestou US$ 200 milhões às
autoridades de Lagos para fortalecer o orçamento do governo do país.
O
Banco Mundial disse que “não é parte da demolição” e que aconselhou o governo
de Lagos a negociar com as pessoas desalojadas, resultando em compensações para
a maior parte daqueles que se declararam prejudicados pelos projetos.
Os
casos envolvendo remoções atraem mais atenção, mas as dificuldades mais comuns
sofridas pelos que vivem em áreas afetadas pelos projetos do Banco Mundial
envolvem perda ou diminuição de renda.
Na
costa noroeste da Índia, por exemplo, membros de uma comunidade muçulmana
historicamente oprimida queixam-se de que a água quente lançada por uma usina
termelétrica a carvão extinguiu os cardumes de peixes e lagostas no golfo, base
de seu sustento. O IFC emprestou à Tata Power, uma das maiores empresas da
Índia, US$ 450 milhões para a construção dessa usina.
Os
Estados Unidos e outros poderes globais criaram o Banco Mundial no final da
Segunda Guerra Mundial para promover o desenvolvimento em países destruídos
pela guerra e pela pobreza. Desde então, os países membros financiam o banco e
votam a aprovação de empréstimos, doações e outros investimentos que somam US$
65 bilhões por ano.
Em
2014, o banco financiou iniciativas tão variadas quanto treinamento para
granjeiros no Senegal e melhorias no sistema de esgoto na Cisjordânia e na
Faixa de Gaza.
Em março, o presidente do Banco Mundial, Kim, disse que a demanda para
investimento em infraestrutura em regiões necessitadas – para proporcionar água
limpa, eletricidade, saúde e outros serviços básicos – vai levar a instituição
a financiar um número cada vez maior de grandes projetos que, provavelmente,
vão remover pessoas de suas terras ou prejudicar seus meios de sustento.
O
Banco Mundial divulgou também um “plano de ação” de cinco páginas e meia com a promessa de
melhorar sua fiscalização de reassentamentos. “Nós devemos e vamos fazer isso
melhor”, disse David Theis, porta-voz do banco, em resposta às perguntas da
equipe de reportagem.
Mesmo
tendo prometido rápidas mudanças em seus procedimentos, o banco propôs
alterações profundas nas políticas que os fundamentam. Agora está revisando a
política de salvaguardas que vai definir a trajetória da instituição nas
próximas décadas. Ex-funcionários e também os atuais alertam que as mudanças
propostas vão minar o compromisso em proteger as pessoas pobres, que foi a
razão de sua criação.
“Eu
fico triste de ver que as conquistas das políticas pioneiras do banco estão
sendo desmanteladas e desvalorizadas”, diz Michael Cernea, um ex-alto
funcionário da instituição que supervisionou as proteções asseguradas nos casos
de reassentamento por quase duas décadas. “Os mais pobres e mais vulneráveis é
que vão pagar o preço.”
O banco diz que ouviu o feedback e vai lançar um rascunho revisado com “as mais
fortes salvaguardas ambientais e sociais”.
História
inacabada
No
Nordeste do Brasil, um desastre provocado pelo homem no fim dos anos 1970
ajudou a incitar o Banco Mundial a adotar seu primeiro conjunto de proteções
sistemáticas para pessoas vivendo no rastro de grandes projetos.
A
construção da represa da hidrelétrica de Sobradinho, com financiamento do Banco
Mundial, alagou diversas cidades e forçou mais de 60 mil pessoas a deixar suas
casas. O reassentamento foi mal planejado e caótico. Algumas famílias fugiram
das comunidades quando a água começou a invadir casas e roças, deixando para
trás rebanhos inteiros de animais que se afogaram.
O
fiasco deu poder a Cernea, o principal sociólogo da instituição, para
convencê-la a aprovar pela primeira vez uma política abrangente de proteção às
pessoas que têm a vida devastada por seus projetos. Aprovadas em 1980, as novas
regras de Cernea basearam-se em uma premissa simples: aqueles que perdem suas
terras, suas casas ou seus empregos por causa desses projetos têm de receber o
suficiente para recuperar ou superar seu antigo padrão de vida. Sob as regras
do Banco Mundial, governos que buscarem empréstimos devem elaborar detalhados
planos de reassentamento para as pessoas física ou economicamente desalojadas.
Pessoas
que trabalharam ou trabalham no banco, no entanto, dizem que o esforço para
cumprir esses padrões tem sido frequentemente minado por pressões internas pela
aprovação de projetos grandes e atraentes. Muitos gestores do Banco Mundial, dizem
as fontes internas, definem o sucesso da instituição pelo número de projetos
financiados. Muitas vezes eles rejeitam exigências que implicam custos e outras
complicações.
Daniel
Gross, um antropólogo que trabalhou como consultor e funcionário do banco
durante duas décadas, conta que órgãos internos de fiscalização das
salvaguardas têm “um lugar na mesa” nos debates sobre quanto a instituição deve
fazer para proteger as pessoas. Mas, em meio ao esforço pela realização dos
projetos, eles são frequentemente ignorados e pressionados para “jogar o jogo e
cooperar”.
Em
uma pesquisa interna feita no ano passado por auditores do banco, 77% dos
empregados responsáveis por garantir a aplicação das salvaguardas disseram
acreditar que a direção “não valoriza” seu trabalho. A instituição lançou a
pesquisa em março, momento em que reconheceu a fiscalização deficiente da sua
política de reassentamento. “As salvaguardas são irrelevantes para os
gestores”, disse um funcionário entrevistado na pesquisa.
Sem
consolo
Em
2007, uma operação de limpeza da costa financiada por um empréstimo de US$ 17,5
milhões do Banco Mundial atravessou a vida dos moradores de Jala, um pequeno
vilarejo às margens do mar Jônico (um braço do Mediterrâneo). Mais de uma dúzia
de famílias pobres viviam ali, muitas em casas com cômodos e andares extras
para alugar aos turistas.
As
autoridades albanesas tinham outros planos para o litoral. Jala parecia ser o
local ideal para construir um resort de luxo que atrairia turistas ao país.
Decidiram então usar o projeto de recuperação da costa – que era gerido pelo
genro de Sali Berisha, o primeiro-ministro da Albânia à época – para realizar o
que queriam.
Em
uma madrugada de abril, dezenas de policiais invadiram a comunidade tendo como
objetivo tomar as estruturas previamente identificadas em fotos aéreas, tiradas
durante os voos pagos pelo Banco Mundial. A polícia arrancou os moradores da
cama e os forçou a deixar suas casas. As equipes de demolição destruíram casas
inteiras e os anexos sob a alegação do governo de que tinham sido construídos
sem as permissões necessárias.
Sanie
Halilaj gritou quando as equipes botaram abaixo metade da casa onde ela e o
marido viveram por mais da metade de um século. “Quando você perde uma pessoa
querida, alguém consola você”, disse a senhora de 74 anos em uma entrevista
recente. “Mas, quando você perde sua casa, não tem consolo.”
Inicialmente
os funcionários do banco negaram a conexão entre as remoções e a operação de
limpeza da costa financiada pela instituição. Um ano depois, porém, o Painel de
Inspeção encontrou “ligações diretas” entre o projeto e as demolições. O órgão
criticou severamente o banco por embarcar em um “esforço sistemático” para
dificultar sua investigação, providenciando respostas “às vezes em conflito total
com informações factuais conhecidas há muito tempo pela administração”.
Depois
de o relatório do Painel ter sido lançado em 2008, o presidente do Grupo Banco
Mundial à época, Robert Zoellick, classificou as ações do banco como
“aterrorizantes”. Zoellick prometeu que a instituição ia rapidamente
“fortalecer a fiscalização, melhorar os procedimentos e ajudar as famílias que
tiveram suas construções demolidas”. “O banco não pode deixar isso acontecer de
novo”, ele disse.
Sete
anos depois, pouca coisa mudou – em Jala, onde os residentes ainda não
receberam pagamento pelo que perderam, e no banco, onde a fiscalização continua
fraca.
Um
relatório interno de 2014 revelou que em 60% dos casos analisados os
funcionários do banco falharam em documentar o que aconteceu com as pessoas
depois que elas foram forçadas a deixar suas casas e terras.
Setenta
por cento dos casos analisados no relatório de 2014 não incluíam nenhuma
informação sobre as reclamações das pessoas que afirmavam ter sido prejudicadas
pelos projetos, indicando que os mecanismos do banco para lidar com queixas
“existiam no papel, mas não na prática”, disseram os críticos internos.
Essas “grandes lacunas de informação” indicam “potenciais fracassos
significativos no sistema de reassentamento do banco”, diz o relatório. “A
inabilidade de confirmar se o reassentamento foi satisfatoriamente completo
representa um risco de reputação para o Banco Mundial”.
“Eles
nos abandonaram aqui”
A
maior parte dos investimentos do Banco Mundial não exige remoções ou prejudica
a habilidade das pessoas de se sustentar e alimentar suas famílias. Mas a
porcentagem dos casos em que isso ocorre tem crescido vertiginosamente nos
últimos anos.
A
auditoria interna de 2012 mostrou que os projetos propostos que ainda não
tinham sido aprovados tinham recorrido à política de reassentamento do banco em
40% dos casos – o dobro de frequência dos projetos finalizados.
O
Banco Mundial e o IFC têm estimulado também o apoio a megaprojetos, como
oleodutos e barragens, que as próprias instituições reconhecem que têm mais
chance de causar danos sociais e ambientais “irreversíveis”, como revelou uma
análise feita pelo HuffPost e pelo ICIJ.
Um
grande projeto pode alterar a vida de dezenas de milhares de pessoas. Desde
2004, as estimativas do Banco Mundial indicam que pelo menos uma dúzia de
projetos financiados pelo banco desalojou física ou economicamente mais de 50
mil pessoas cada um.
Estudos
mostram que realocações forçadas podem quebrar redes de afinidade e aumentar os
riscos de doenças. Populações reassentadas têm maior probabilidade de sofrer
com desemprego e fome, e os índices de mortalidade são mais altos.
O
Banco Mundial reconhece que o reassentamento é difícil, mas afirma que muitas
vezes é impossível construir estradas, usinas de energia e outros projetos
muito necessários sem tirar pessoas de suas casas. “Nós mantemos nossa posição
diante da necessidade de continuar financiando projetos de infraestrutura,
incluindo aqueles que acarretam aquisição de terras e reassentamento
involuntário”, disse Theis, o porta-voz do Banco Mundial.
O
banco diz que trabalha para garantir que seus clientes forneçam ajuda real às
pessoas relegadas ao segundo plano por grandes projetos. Em Laos, diz o banco,
autoridades construíram mais de 1.300 novas casas com eletricidade e banheiros,
32 escolas e dois centros de saúde para milhares de pessoas forçadas a se mudar
para abrir espaço para uma barragem financiada pelo Banco Mundial.
“Por
meio da elaboração cuidadosa do projeto e da implementação adequada, a
aquisição de terras e o reassentamento involuntário resultaram em uma melhora
significativa na vida das pessoas”, disse Theis em um pronunciamento.
Trinta
e cinco famílias vivem em uma pequena agrovila construída pelo governo,
batizada de Gameleira por causa do açude de mesmo nome que os forçou a deixar
suas casas à beira do rio Mundaú.
Nas
antigas casas, eles podiam usar água de poços e do próprio rio, mas na agrovila
construída para o reassentamento não há fonte de água potável. Num relatório, o Banco Mundial reconheceu o
atraso no fornecimento de água potável para a nova vila, mas afirmou que os
problemas haviam sido resolvidos no fim de 2012.
Os
moradores dizem que isso não é verdade. Quatro anos depois de serem realocados
à força, eles ainda estão esperando a construção de uma pequena adutora que
levaria água do novo reservatório para a agrovila, prometida pelas autoridades.
Enquanto isso, a água do açude está sendo bombeada para áreas urbanas.
Um
poço na comunidade fornece água salobra e, mesmo com o dessalinizador, cada
família só tem acesso a 36 litros por dia. As famílias complementam o
abastecimento comprando água de caminhões-pipa, algumas vezes chegando a gastar
um terço de sua renda já modesta.
Essas
compras fornecem água suficiente para irrigar pequenas plantações de mandioca,
feijão e milho. Para irrigar plantações comerciais, como a de castanha-de-caju,
eles precisam esperar pela chuva, que raramente vem.
“Nós
sentimos que estamos sofrendo para as pessoas da cidade terem água”, diz o
agricultor Francisco Venílson dos Santos, de 39 anos, pai de quatro meninos e
duas meninas. “Eles nos abandonaram aqui.”
Atalhos
Em
julho de 2012, um líder pouco convencional assumiu a presidência do Banco
Mundial. Jim Yong Kim, um médico coreano-americano conhecido por seu trabalho
de combate à aids na África, tornou-se o primeiro presidente do Banco Mundial
cuja experiência não era em economia ou política.
Duas
décadas antes, Kim tinha feito parte de protestos em Washington, D.C., que
reivindicavam o fechamento total do banco por valorizar indicadores como
crescimento econômico em detrimento da assistência a pessoas pobres.
Defensores
dos direitos humanos e funcionários do banco responsáveis pelas salvaguardas
esperavam que a nomeação de Kim sinalizasse uma mudança em direção a maior
proteção para as pessoas afetadas pelos projetos do Banco Mundial.
Em
março, Kim afirmou que estava preocupado com “grandes problemas” na
fiscalização das políticas de reassentamento do banco e anunciou um plano de
ação pedindo maior independência para os órgãos que fiscalizam as salvaguardas
e um aumento de 15% no financiamento para incentivar a aplicação das regras.
Mas,
embora Kim e outros funcionários graduados do banco reconheçam diversas
deficiências no controle dos projetos financiados, eles negaram de forma
consistente que o banco tenha parte da culpa por remoções violentas ou
indevidas feitas por seus clientes.
Na
Etiópia, o Painel de Inspeção do Banco Mundial descobriu que a instituição
violou as próprias regras ao deixar de reconhecer uma “ligação operacional”
entre uma iniciativa de saúde e educação financiada pelo banco e uma campanha
de remoção em massa feita pelo governo etíope. Em 2011, os soldados
responsáveis pelas remoções espancaram, estupraram e mataram pelo menos sete
pessoas, de acordo com um relatório da Human Rights Watch e entrevistas feitas
pelo ICIJ com removidos.
“Nós
poderíamos ter feito mais”, disse Kim, para ajudar as comunidades removidas. Em
última instância, o banco não era culpado.
Na
Índia, o ombudsman interno do IFC descobriu que a instituição tinha infringido
suas políticas ao não fazer o suficiente para proteger a grande comunidade
pesqueira vivendo sob a sombra da usina termelétrica a carvão financiada no
golfo de Kutch. Com a aprovação de Kim, a direção do IFC rejeitou muitas
descobertas do ombudsman e defendeu as ações do seu cliente corporativo.
Tanto
na Etiópia quanto na Índia, o Banco Mundial se recusou a determinar que seus
clientes compensassem totalmente as comunidades afetadas.
Em
resposta às reclamações sobre as remoções de Badia East, na Nigéria, o Banco
Mundial optou por um atalho que contradiz suas regras.
Normalmente,
a comunidade que se considera prejudicada por um projeto do banco pode enviar
uma reclamação, desencadeando uma investigação do Painel de Inspeção. Mas,
quando três moradores de Badia East apresentaram a reclamação, funcionários do
Painel adiaram o lançamento da queixa e a investigação. Em vez disso, levaram
os moradores para participar de um programa piloto de mediação de disputas. O
programa coloca a comunidade para negociar diretamente com o governo estadual
de Lagos.
O
Painel de Inspeção prometeu a Megan Chapman, uma advogada de uma organização
local que representava os moradores removidos, que, se a comunidade de Badia
East não ficasse satisfeita com o resultado, poderia demandar uma investigação
a qualquer momento, de acordo com e-mails analisados pelo ICIJ.
As
negociações não ocorreram bem para os residentes removidos. O governo de Lagos
insistiu que eles eram invasores ilegais, ainda que alguns morassem no local
havia décadas. E deu um ultimato ao grupo: aceitar um pagamento pequeno e
assinar um documento abrindo mão de seus direitos legais ou ficar sem nada.
Chapman acredita que a oferta do governo violou a política de reassentamento
porque não forneceu novas casas para os removidos nem compensação equivalente
ao que eles perderam. Os pagamentos que as autoridades de Lagos ofereceram para
estruturas maiores removidas, por exemplo, foram 31% mais baixos do que a
avaliação do próprio Banco Mundial.
“Foi
como Davi e Golias. Eram pessoas pequenas lutando contra um gigante”, disse
Chapman. O banco “realmente deixou pessoas vulneráveis por conta própria”.
O
ultimato do governo dividiu a comunidade. O líder da organização de Chapman
disse que aquela era a melhor oferta que as pessoas removidas iam receber. Ele
disse que estava satisfeito com o acordo. Muitos moradores e seus defensores,
incluindo Chapman, foram contra.
Mas
eles não tinham onde buscar ajuda. E-mails internos obtidos pelo ICIJ indicam
que, no começo de 2014, o presidente do Painel de Inspeção, Eimi Watanabe, já
estava tentando garantir que não se investigasse o papel do Banco Mundial no
caso.
Depois
de ter ouvido que o líder do grupo de Chapman estava satisfeito com o resultado
das negociações, Watanabe encorajou sua equipe a emitir uma notificação oficial
encerrando a possibilidade de qualquer investigação antes que o frágil acordo
se desmantelasse, segundo os e-mails obtidos pelo ICIJ.
“Pl
[por favor] emita uma notificação mais cedo, antes que isso se desenrole”,
Watanabe escreveu em 6 de fevereiro de 2014.
A
diretiva de Watanabe não acabou com a investigação imediatamente, mas ao longo
dos meses seguintes o Painel deixou claro que não queria investigar mais a
fundo as ações do Banco Mundial.
Em
julho de 2014, dois dos três moradores que tinham enviado a reclamação disseram
ao Painel que estavam insatisfeitos com o acordo e que queriam continuar com a
investigação. O Painel rejeitou o pedido e fechou o caso com uma notificação
oficial, afirmando que o reassentamento ficou aquém dos padrões do próprio
banco.
Chapman
e outros defensores dizem que o banco os enganou em relação ao funcionamento do
programa piloto e abandonou o povo de Badia East.
Watanabe
não respondeu às perguntas do ICIJ sobre o caso de Lagos.
O
banco disse que o Painel de Inspeção tinha fechado o caso por causa “do
progresso alcançado e a rápida provisão de compensações para as pessoas
removidas”. Ele planeja expandir o programa piloto e já aplicou o modelo em um
segundo caso no Paraguai.
Tempo
futuro
Ao
entrar em sua oitava década, o Banco Mundial enfrenta uma crise de identidade.
A
instituição não é mais o único emprestador disposto a se aventurar em nações em
desenvolvimento e financiar grandes projetos. Ela está sendo desafiada por
novos competidores de outros bancos de fomento que não têm as mesmas garantias
sociais – e estão rapidamente obtendo adesão dos que costumavam apoiá-la.
A
China criou um novo banco de desenvolvimento e persuadiu a Grã-Bretanha, a
Alemanha e outros aliados dos americanos a se juntar, apesar da oposição dos
EUA.
Essas
mudanças geopolíticas levantaram dúvidas sobre se o Banco Mundial ainda tem a
influência – ou o desejo – de impor proteções fortes às pessoas que vivem no
caminho do desenvolvimento.
Responsáveis
por direitos humanos da ONU escreveram a Kim para dizer que estão preocupados
com a facilidade cada vez maior dos clientes em acessar outras fontes de
financiamento e impulsionou o banco a se juntar a uma “corrida para o fundo”,
rebaixando ainda mais seus padrões de proteção.
As
mudanças nas regras das salvaguardas propostas pelo banco garantiriam a muitos
clientes a autoridade para se autopoliciar. No atual rascunho, seria permitido
aos governos adiar a elaboração de planos de reassentamento até depois de o
banco dar o sinal verde aos projetos. Eles teriam também a permissão para usar
as próprias políticas ambientais e sociais em vez das salvaguardas do banco,
contanto que este determine que essas políticas são condizentes com as suas
próprias.
Alguns
funcionários e ex-empregados da instituição dizem que essas mudanças
resultariam em desastres para as pessoas que vivem no rastro cada vez maior dos
projetos do banco – permitindo que os governos sigam padrões nacionais mais
fracos e decidam se as populações precisam de proteção depois que eles já
receberam financiamento.
Em
dezembro, o Congresso americano, o grande esteio do Banco Mundial, aprovou uma
medida orientando o representante dos EUA no conselho do banco a votar contra
qualquer projeto futuro que esteja sujeito a salvaguardas mais fracas do que as
atuais.
O
banco disse que as novas regras fortaleceriam as proteções para as pessoas
afetadas por esses projetos.
Theis,
o porta-voz da instituição, disse que, sob as novas regras, “um adiantamento
rigoroso do escopo dos projetos é sempre necessário” e os clientes ainda
precisam preparar planos para tratar do reassentamento e outros impactos
adversos do projeto “muito antes de qualquer atividade de construção”.
Funcionários
do Banco Mundial estão desenhando uma nova versão das salvaguardas que, dizem,
levará em conta as críticas do rascunho anterior. Eles esperam lançar o novo
rascunho no fim deste semestre ou durante o verão americano.
No
meio-tempo, o Banco Mundial continua aumentando seus investimentos em grandes
projetos de infraestrutura, como o que destruiu a casa de Bimbo Osobe em Badia East.
Depois de sua remoção, Osobe passou meses dormindo embaixo de
uma rede que servia de abrigo, ela disse.
No
meio de março, ela estava ficando em uma clínica médica, dormindo na recepção,
depois de fechar, à noite. Ela conta que foi forçada a mandar os três filhos
para viver com parentes.
“Não
é uma coisa boa para uma família ser dividida”, disse Osobe.
Explore
a base de dados interativa feito pelo ICIJ com todos os projetos do Banco
Mundial que causaram impactos negativos entre 2004 e 2013 no link original da reportagem.
Agência
Pública, em Envolverde