A virada paulista
As
mobilizações desta sexta-feira mostraram que o PT deve perder o medo das ruas.
Mais que perder o medo. Apostar nelas.
Saul
Leblon – Carta Maior, editorial
Se
existe aprendizado em política, as mobilizações registradas no Brasil nesta
sexta-feira, 13, mas sobretudo, a passeata de cerca de 50 mil pessoas que tomou
conta da avenida Paulista, em
São Paulo debaixo de um temporal diluviano, não deve ser
tratada com negligência.
Nem
pela direita.
Quanto
mais pela esquerda.
A
manifestação robusta que irrompeu no coração do conservadorismo brasileiro
surpreendeu o mundo político, surpreendeu a mídia conservadora, surpreendeu os
sindicalistas, surpreendeu um PT, de lideranças graúdas inexplicavelmente
ausentes, e certamente surpreendeu também o golpismo, assim como não era
esperada tampouco pelo governo.
Quem
esteve lá sabe do júbilo estampado nas faces de homens e mulheres de origem
predominantemente popular que ali se reuniram vindos de pontos distantes da
Grande São Paulo, igualmente deslumbrados ao se identificarem com a alma e o
corpo lavados como protagonistas de um acontecimento ímpar.
Uma
virada paulista.
O ato
que que se estendeu pelos três quilômetros da avenida, de dimensões
absolutamente impensáveis horas antes, desafiou todas as circunstancias
adversas que o cercavam.
Tinha
tudo para dar errado.
Uma
agenda ambígua de apoio e crítica ao governo, a convocação confusa, quase
revogada no meio do caminho, o distanciamento desencorajador do governo, o vai
não vai das lideranças do PT – que, ao final, não vieram, o fim de tarde
de uma sexta-feira, ainda por cima 13, a chuva -- imprevista pela meteorologia,
que para cúmulo das provações desabou como um temporal copioso na descida da
Consolação, ademais do medo de enfrentamentos com a direita, martelado
insistentemente pela mídia, etc.
Enfim,
só um milagre autorizava apostar no êxito de um ato num quadro político até
então tomado por uma vertiginosa e aparentemente incontrolável escalada
golpista.
Daí
o olhar cúmplice do tipo ‘nós fizemos’’ que os marchadores trocavam em meio à
cortina de água que chicoteava de cima e gelava os pés à caminho da praça
da República, na altura do cemitério da Consolação, quando a culatra da
passeata ainda deslizava sua grandiosidade pela Paulista.
Alguns
preferiram não acreditar no que viam.
Caso
escandalosamente deliberado do O Globo, por exemplo.
Incapaz
de explicar o que deu errado com a sua esférica avaliação de um governo Dilma
crepuscular e isolado, o jornal dos Marinhos, sapecou em seu site um irrisório
‘atos pró-governo reúnem 33 mil em 24 estados’.
Assim,
numa aritmética sem pejo, sonegou aos heróis da virada paulista uma existência
física, mas sobretudo política, inscrita no caudal sem fim que o seu
telejornalismo não teve a coragem de mostrar em perspectiva e tampouco nas
imagens aéreas feitas e sonegadas aos seus telespectadores.
A
blindagem cognitiva fica escancarada quando a própria e insuspeita Datafolha,
de conhecidas tradições, reconhece o que era ostensivamente incontornável:
havia mais de 40 mil pessoas emendando toda a extensão dos três quilômetros da
avenida Paulista até as proximidades da Igreja da Consolação, mais dois
quilômetros abaixo.
Alguns,
os mais entusiasmados, falavam em 100 mil lavadas pelas das águas de
março na descida da Consolação, rumo à praça da República.
Que
tenham sido 50 mil. Ou, por baixo, os 41 mil do Datafolha.
A
verdade é que depois de aguaceiro humano e político desta improvável
sexta-feira 13, o Brasil não é o mesmo.
E
o Brasil não é o mesmo porque em
São Paulo a rua não é mais da direita.
Não
sendo mais da direita no coração do conservadorismo brasileiro, a agenda
política nacional mudou.
E
de tal forma que não importa o que acontecer domingo na mesma avenida porque
ela já não é mais o balneário da reação.
Poucas
vezes foi tão importante a presença das forças progressistas e democráticas
nas ruas como aconteceu nesta sexta-feira.
Não
importa o que ocorrer dia 15 , a virada já aconteceu.
A
agenda do golpe foi maciçamente afrontada – no seu núcleo duro e em mais 23
cidades brasileiras.
Mas
o que se deu em São Paulo
foi adicionalmente significativo por enviar um recado de uma parcela específica
da população para o centro da disputa política.
O
que se via debaixo do aguaceiro era maciçamente um painel do rosto da periferia
brasileira.
Um
rosto de maciça composição popular que demonstrou o poder de mobilização da CUT
e dos movimentos populares.
O rosto
de um personagem que não tocou panelas no levante da varanda gourmet no domingo
anterior.
Mas
que agora mandava um recado líquido e pluvial a quem possa interessar.
A
contrapelo de muitos, São Paulo provou que o capital político do governo
Dilma é maior do que diz o agendamento conservador. Maior do que o próprio
governo e o PT supõem.
Resta
não desperdiçá-lo.
Um
bom começo é aprender a lição do poder que tem o desassombro político.
A
política não é uma equação estática.
A
mudança de uma peça altera o equilíbrio de todo o tabuleiro.
A
pretensão tucana de sangrar o governo Dilma até 2018 e assim ferir de morte
também uma eventual candidatura de Lula, só ganha aderência real se o outro
lado se enquadrar no figurino da paralisia política.
A
prostração pode mudar com uma iniciativa que inaugure uma nova referência
política.
Ou
não foi a versão extremada disso que aconteceu em 24 de agosto de 1954?
O
sacrifício pessoal de Vargas e uma carta testamento memorável escancaram a
natureza antipopular do cerco conservador ao seu governo incendiando a revolta
nas ruas contra os adversários golpistas.
Não
é preciso o gesto extremo, porém, para reverter a escalada de um golpe de
Estado.
O
importante a reter – que a virada paulista desta sexta-feira reafirmou — é a
coragem da iniciativa política.
Em
1961, a mesma cepa que hoje se propõe a sagrar o Brasil tentou impedir a
posse de Jango, após a renúncia de Jânio Quadros.
Só
uma resistência organizada – é oportuno escandir a palavra
or-ga-ni-za-da – impediria a consumação do golpe branco.
Mas
ela tardava.
Foi
então que Leonel Brizola mexeu uma peça no tabuleiro do xadrez político.
Em
27 de agosto, ele personificou o gesto redefinidor com a criação da
‘Cadeia da Legalidade’.
De
início, formada por uma rede de rádios gaúchas, a resistência operava do
porão do Palácio Piratini, para onde o líder gaúcho requisitara os
transmissores da rádio Guaíba, de Porto Alegre.
As
tropas da Brigada Militar protegiam o Palácio em vigília diuturna.
Através
das ondas médias e curtas ocupava-se o noticiário 24 horas por dia.
Brizola
conclamava o povo a ir às ruas em defesa da legalidade democrática,
contra o golpe da junta militar que, em Brasília, recusava autorização
para Jango, em viagem oficial ao exterior, retornar ao país.
Aos
poucos, outras emissoras de Porto Alegre e do interior do Estado uniram-se
à Rede, que chegou a cravar 100% de audiência no estado.
O
efeito contagiante da resistência romperia a fronteira gaúcha para
formar uma cadeia com 104 emissoras de todo o Brasil e de países vizinhos.
Boletins
noticiosos em inglês, espanhol e alemão passaram a ser emitidos.
Foram
10 dias que abalaram o Brasil.
Finalmente,
o III Exército rachou e declarou solidariedade ao movimento.
O
conjunto forçou o Congresso conservador a buscar uma solução negociada.
Em
7 de setembro de 1961, Goulart receberia a faixa presidencial.
O
inusitado ocorrido na avenida Paulista nesta sexta-feira 13 contém a
contagiante vitalidade dos gestos que devolvem o poder de iniciativa ao campo
progressista.
Forças
que se imaginava menos mobilizáveis e mais frágeis ergueram-se pelos próprios
cabelos para devolver a bola do jogo ao governo e ao PT.
Cabe-lhes
não desperdiçar o precioso espaço reconquistado.
Um
bom começo é perder o medo da rua.
Mais
que perder o medo.
Apostar
na rua.
Nas
próximas manifestações – porque serão necessárias -- seria interessante
que lideranças do partido, inclusive as mais graúdas, voltassem a essa origem.
E
marchassem ao lado do povo.
Esse
povo ‘pago’, segundo a mídia, que veio das periferias distantes tem algo a
ensinar às suas lideranças.
Em
defesa da democracia, do pré-sal e do Brasil é preciso sair na chuva para se
molhar.