União Europeia começou como projecto de integração há sessenta e quatro anos
como uma escapatória, uma solução de recurso, uma emergência para colocar os
povos europeus a coberto de um terceiro mergulho num belicismo autofágico que
dinamitasse o continente. Como espaço de liberdade, de encruzilhada de
culturas, línguas e religiões, de convergência de identidades, a Europa
afirmou-se, benignamente, pela sua diversidade, pluralismo e sentido de
inclusão.
Os Pais Fundadores do que se consagrou dizer-se Comunidades Europeias e depois
União Europeia, tiveram a ideia de pôr em comum as indústrias que alimentaram
as guerras e as infra-estruturas económicas que possibilitassem, através da
gestão conjunta e independente, o desenvolvimento sustentado do espaço de integração.
No fundo, sem o que o dissessem explicitamente, quiseram criar mecanismos de
auto e hetero-vigilância que dissuadissem os sonhos nacionalistas de
rearmamento e anexação territorial que haviam partido de Berlim.
Afinal, nos séculos que o precederam, a história da Europa havia sido um ciclo
interminável de criação e fim de impérios, de guerras religiosas e étnicas,
onde à velocidade de cruzeiro se redesenhavam as fronteiras pela diletante
vontade de príncipes e monarcas nos seus sonhos megalómanos de grandeza, poder
e domínio territorial. O sistema absolutista, fundado no direito divino dos
reis (e dos príncipes), foi o gramasso ideológico desta sedução pelo mando e
pela hegemonia que esteve sempre nos pesadelos da Europa.
A democracia, na sua raiz etimológica grega ‘demo’e ‘kratia’, surgiu como
alternativa de governo num arquipélago a sul do continente como forma de
preservação da identidade étnico-cultural das cidades-estado que o integravam e
de sobrevivência das suas elites. Afinal, o governo de ‘todos’ excluía os
escravos, os prisioneiros, os veraneantes, os metecos dessas pequenas
comunidades de pouco mais de mil habitantes. Um milénio e meio depois, a ideia
de uma democracia representativa fundada no censos das propriedades afirmava-se
numa ilha do Mar do Norte como afirmação da voz dos gentis-homens contra as
apetências autocráticas de um soberano. Um rei que se via a governar pelo mando
de Deus contra (se necessário) a vontade dos seus súbditos representados em Parlamento. A Magna
Carta – cujo centenário se comemorou há pouco – simboliza a amarração da ideia
de governo pelo consentimento ao projecto europeu. Valor fundacional que
através das revoluções liberais se estendeu ao continente e por aí se ancorou.
Esteve sempre presente na incubação do projecto europeu que os governos, ainda
que eleitos em eleições livres e universais, têm um mandato limitado no tempo e
condicionando à vontade dos cidadãos reunidos em assembleia política. Vontade
expressa através dos seus representantes eleitos. Como esteve presente que
aqueles são mandatados para exercer o poder são responsáveis perante o povo e
prestam-lhe contas, regularmente.
Corolário deste ideia central de um poder não ilimitado ficou impresso nos
textos sagrantes da União Europeia que os Estados-membros mantêm o essencial
dos seus poderes soberanos, que os governos nacionais subsistem como entes
independentes com os seus parlamentos nacionais e que a última expressão do
exercício da vontade soberana reside na Nação.
Sempre que a hipótese da união da Europa, através de uma federação, se colocou,
quer como utopia quer como inevitabilidade, os europeus pronunciaram-se de
forma clara contra esse projecto, contrapondo-lhe o paradigma de uma união
voluntária de estados-nação escrupulosos da sua independência. Recorda-se os
movimentos políticos dos anos 1950 que propugnaram a federalização da Europa e
a fracassada Convenção para o Futuro da Europa de 2003. No arrebatamento
pró-federalista isso foi lido como uma resistência irracional aos rumores do
tempo e do ‘progresso’, uma recusa ‘egoísta’ das elites em aceitar a
inevitabilidade da marcha para um qualquer reino neoplatónico de felicidade na
Terra, simbolizado por uma bandeira azul multi-estrelada e pelo Hino da Alegria
de Beethoven.
Este sonho idílico faria sentido se a Europa pudesse permanecer em paz sem
ameaças visíveis nas suas fronteiras a Sul e a Leste, se o modelo económico de
solidariedade institucional funcionasse como um carrilhão bem oleado, se os
grandes potentados como a Alemanha e a França desistissem da sua apetência para
a hegemonia no continente, a qual alimentara os sonhos imperiais de uma e de
outra. Mas as nações raramente mudam os seus desígnios mais profundos a menos
que a história e o destino lhes imponham que ajoelhem ou se contenham pela
ameaça da derrota ou do aniquilamento.
Num precipitado movimento de alargamento para além do que poderia comportar, a
União Europeia abraçou primeiro os países ibéricos e do Sul, depois os países
do Centro e do Norte que resultaram da implosão da União Soviética e dos seus
satélites e finalmente alguns dos componentes da antiga República Jugoslava.
Como modelo escolheu a virtude laborista do protestantismo huguenote que levara
à transformação da Prússia na Alemanha dos nossos dias, esquecendo que os valores
culturais que animam esses povos das terras do frio e da neve não são
compatíveis com a predilecção setentrional para o lazer, o consumo, a boa-mesa,
o divertimento lúdico e o veraneio. Porque o capital, numa lógica da acumulação
e multiplicação das rendas havia singrado para as praças financeiras do Norte
da Europa, a Europa embarcou na aventura da moeda única que identificara como o
terceiro símbolo da sua união de vontades. Fê-lo sem perceber (ou não o querer)
que nem todos os Estados estavam em condições de respeitar os critérios de
convergência da União Económica e Monetária, nem havia garantias de o
garantirem no futuro.
O que é que mudou nos últimos quinze anos que fez estremecer as branduras de um
casamento para toda a vida dos estados-membros da Europa? Desde logo, o facto
de a queda do Império Soviético ter transformado a Rússia na Prússia de
outrora, de regresso aos seus sonhos de grandeza imperial à custa dos vizinhos.
A anexação da Crimeia, a constituição do arco sanitário russófono no leste da
Ucrânia, o assédio às repúblicas do Báltico revela que o estalinismo escondido
de Vladimir Putin incorpora, na verdade, desígnios de expansão territorial à
custa de países que são hoje parte da União Europeia. Em segundo lugar, a
quebra do eixo franco-alemão permitindo à Alemanha se apresentar, aos olhos de
todos, como a única guardiã da unidade europeia, a garante das suas políticas
económicas, financeiras e de integração. Um domínio matizado pelo controlo
inteligente do Banco Central Europeu, pelo peso dos bancos alemães no sistema
monetário europeu e pela liderança política alemã do Conselho Europeu.
A crise da Grécia é apenas uma pequena nota do que aí vem em termos de
perturbação do projecto europeu, de erosão da solidariedade e coesão europeias,
da periclitante sobrevivência do Euro e da relação político-estratégica com a
Rússia de Putin. É a relação da Europa – no seu todo – com a Alemanha de Ângela
Merkel que está hoje problematizada.
A Europa foi a bóia de salvação da Alemanha no doloroso processo de
reconstrução do pós-guerra. Setenta anos depois não pode aceitar ser o parceiro
acomodatício e silencioso perante o namoro germano-russo. Talvez como há sete
décadas atrás a esperança resida num promontório delimitado por escarpas do
outro lado do Canal da Mancha habitado por gente especialmente zelosa da sua
liberdade.