Afropress
- editorial
Que
o Brasil é um país onde se pratica a mais sofisticada modalidade de racismo do
planeta, não é novidade. Que vige por aqui um tipo de racismo que não se
manifesta às claras, que é camuflado, dissimulado, hipócrita, também não é
novidade.
Que
a desigualdade social mantida por todos os Governos – inclusive o atual, no
poder há 11 anos – é perversa e obscena, responsável por um apartheid informal
que reserva aos pretos e pobres as margens, os guetos, e veda o acesso dessas
camadas não só aos bens de consumo, mas aos direitos básicos da cidadania,
estamos carecas de saber, desde sempre!
Que
os "rolezinhos" - encontros marcados por jovens nas redes sociais -
já vinham acontecendo desde há muito reunindo a garotada da periferia, que
passou a ter acesso a Internet e, portanto, a fazer uso das redes, também todo
o mundo sabe. Trata-se de uma manifestação cultural que, até aqui, não havia se
tentado criminalizar.
O
que aconteceu de novo, então? É simples: a novidade foi a reação estapafúrdia e
estúpida dos donos dos shoppings a esse tipo de manifestação
expontânea da juventude. Os dirigentes dessas empresas passaram a acionar a
Justiça e a Polícia para filtrar a entrada nesses espaços, escancarando
tratamento padrão dispensado costumeiramente a pretos e pobres no Brasil. Eis
onde o problema começa e por onde pode terminar.
Sabe
aquele olhar desconfiado que você recebe sempre que entra numa loja ou olha o
tênis de marca na vitrine? Agora esse olhar foi aumentado milhões de vezes,
multiplicado pela quantidade de jovens com esse perfil que entram nesses
espaços.
Os
jovens que participam dessas brincadeiras marcadas pelo Twitter ou Facebook
sabem que essa é a regra. Já se acostumaram a esses olhares e reagem a eles da
forma como reagimos a outros olhares de natureza discriminatória em nosso
cotidiano.
Quando,
porém, acionada pelos donos dos shoppings, a Justiça concede liminares
proibindo o acesso, aplicando multas pesadas aos "infratores" fica
evidente que há, sim, discriminação contra pobres e pretos. Quando a Polícia,
acionada para cumprir a determinação judicial sai jogando bomba de gás
lacrimogênio a torto e a direito e passa a revistar e pedir documentos como
condição de acesso, temos o apartheid escancarado. Não há como
esconder: estamos diante de uma postura política que precisa ser denunciada,
desmascarada e derrotada, sob pena de se institucionalizar, em pleno
autoproclamado Estado Democrático de Direito, a segregação sóciorracial.
Consagra-se
o princípio estranho a nossa doutrina e jurisprudência do direito penal do
autor. No Brasil o autor de uma determinada conduta delituosa deve ser punido
pelo que fez (direito penal do fato ou da culpa), e não pelo que é
(direito penal do autor).
São
os herdeiros da Casa Grande recorrendo às velhas práticas, evidenciando sua
visão de que preto e pobre é suspeito mesmo e, se forem muitos, mais suspeitos
ainda. Não é possível. Trata-se de uma violação clara a direitos assegurados
nas Leis e na Constituição, que são conquistas irrenunciáveis.
Há
um argumento que tem sido brandido pelos que são a favor de liminares judiciais
proibindo o acesso do qual é impossível discordar: shopping não é
lugar – nem do ponto de vista do espaço, nem da finalidade – para manifestações
públicas. Pretender que sejam - como querem alguns - é um tiro no pé para quem
luta contra o racismo e a discriminação porque reforça estereótipos arraigados
numa sociedade que há apenas 125 anos aboliu a escravidão.
Pesquisa
feita esta semana pela empresa Hello Research revela que 71% dos paulistanos
são contra os "rolezinhos". As liminares que naturalizam o apartheid
tem o apoio de, nada menos que, 68% da população, apoio que chega a 84% na
classe A (a classe média alta) e se mantém expressivo mesmo na classe D - 59% -
constituída na sua maioria por pretos e pardos. Pior: a abordagem e a revista
da PM a jovens nesses encontros, chega a 70%, o que consolida a visão
cristalizada da população a respeito do preto e do pobre como suspeito padrão.
Eis, o quadro, que não deixa dúvidas a respeito de que há razões, de sobra,
para se temer retrocessos: medidas claramente discriminatórios com amplo apoio
social.
A
onda de "rolezinhos" só faz sentido se os seus organizadores tiverem
a capacidade de apresentar uma agenda aos donos dos shoppings que
comece pelo compromisso público de que retirarão qualquer medida judicial e ou
policial que configure a proibição do acesso a esses espaços por parte de quem
quer que seja, de vez que tais locais, são espaços semi-públicos.
O
segundo ponto dessa pauta deveria ser o compromisso das empresas de mudarem sua
postura, promovendo o treinamento e estimulando a prática de uma educação
antidiscriminatória e antirracista a todos os seus funcionários, a começar
pelos seguranças, cujo histórico nesse quesito é conhecido e não é nada
abonador, todos sabemos.
O
terceiro aspecto que deve ser levantado e cobrado é o compromisso dos
dirigentes dosshoppings de mudarem sua política de recrutamento e contratação
de pessoal para garantir a diversidade, o que hoje não ocorre. Em alguns, a
sensação nítida é de que se está num estabelecimento similar de algum país
nórdico (Suécia, Dinamarca, Noruega) a julgar pela aparência e perfil das
atendentes. O Sindicato dos Comerciários de S. Paulo, há alguns anos, fez
pesquisa em que ficou demonstrado que negros são raros nas lojas: eles podem
ser encontrados apenas entre os seguranças e pessoal da limpeza.
E
por fim, nessa agenda é preciso exigir-se dos Governos - do municipal ao
federal, passando, naturalmente pelo Estado -, compromissos concretos para que
a cidade seja de todos, que os pobres não continuem a ser expulsos para as
margens, e para se avançar na distribuição de renda e redução das desigualdades
sóciorraciais que são a causa e a fonte de quase todos os males que nos afetam.
Não
se muda realidade com factóides. Todo mundo que frequenta shoppings, e
são milhões de pessoas, inclusive negras, quer usufruir desses espaços de
entretenimento, lazer e compras, e não deseja, por óbvio, ser atropelado por
multidões de jovens que, porventura, pretendam monopolizar um espaço que é
público.
Mas,
também não queremos que o acesso a esses espaços seja objeto de filtros de
caráter óbviamente discriminatório aos pobres e pretos, porque ambos tem todo o
direito de entrar e sair a qualquer hora de qualquer espaço público e tem mais
um outro direito sagrado: o de não ser tratado como suspeito em nenhuma
circunstância.
Depredações
do patrimônio público e ou privado, crimes - que, diga-se de passagem, até aqui
não ocorreram nesses eventos - se ocorrerem, que se apliquem as Leis. É para
isso que elas existem.
É
preciso que o movimento social antirracista autêntico adote um programa que, de
um lado aglutine todos os setores que querem mudanças; e de outro não contribua
para assustar e colocar em posição raivosa e reativa os frequentadores desses
espaços.
Quatro
são as propostas que sugerimos sejam apresentadas ao presidente da Associação
Brasileira de Shoppings Centers (Abrasce), Luiz Fernando Veiga, como
ponto de partida para um diálogo a ser mediado pelo Ministério Público do
Estado de S. Paulo.
1
– fim das ações na Justiça que buscam a criminalização de uma prática cultural
que há anos vem sendo adotada; e encerramento das ações em andamento, nas quais
foi concedida liminar;
2
– Programa de Educação antirracista e de Valorização da Diversidade, a ser
promovido e adotado pelos shoppings visando a educação dos seus
funcionários – inclusive dos seguranças notoriamente envolvidos - e com
preocupante frequências - em casos de discriminação.
3
– Mudança na Política de Recursos humanos e de contratações de funcionários
visando garantir a diversidade nesses estabelecimentos, especialmente nos
setores de atendimento.
4
– Cobrança de ações a serem adotadas pelos Governos – do municipal ao federal,
passando pelo Estadual – visando a redução da perversa, infame e obscena
desigualdade social, que é a fonte e a mãe de toda a prática discriminatória.
Foram
os dirigentes dos shoppings e a Justiça que politizaram a questão;
transformaram o "rolezinho" de um evento cultural, em um fato
político, de que até a Presidente da República passou a se ocupar conforme
noticiado pelos jornais. Então, como diz o velho e bom ditado popular "quem
pariu Mateus que o balance". Que sentem à mesa com representantes desses
jovens organizadores dos "rolês" e com mediação do Ministério
Público, e mudem de postura. Afinal, não custa lembrar: estamos no século XXI e
cansados desse Brasil "retógrado" - com cara de Casa Grande &
Senzala.
*Editorial
de Afropress datado de 19.01.2014