Rui
Peralta, Luanda
I
- Péricles definiu a democracia como a forma de governo que “qualifica-se não
em relação aos poucos, mas á maioria”, contrapondo-a às formas oligárquicas de
governo. A contraposição “democracia / oligarquia” é complementada pela
contraposição “governo das leis / governo dos homens” e ambas as contraposições
atravessam toda a História do pensamento político. Péricles realçou esta
complementaridade ao considerar que “as leis regulam as controvérsias privadas
de modo tal que todos tenham um tratamento igual”, coisa que o “governo dos
homens” não poderia assegurar. A superioridade do “governo das leis” advém do
facto de ele ser inerente ao conceito de democracia e de ser o garante da
igualdade jurídica (a “isonomia”).
A
apologia do “governo das leis”, contraposto ao “governo dos homens”, elege a
tirania como uma forma antiética de governo, uma forma corrompida e degenerada
de governo, temporário e ilegítimo. Temporário porque surge nos períodos de
crise e desaparece com a normalização, ou porque sucumbiu por efeito dos seus
métodos intoleráveis. O tirano é perseguido, aprisionado ou assassinado (o
tiranicídio é legitimo). A tirania é ilegítima porque viola os fundamentos do
“governo das leis” que consideram que o título do poder tem de ser conforme a
lei fundamental e o exercício do poder tem de estar conforme as leis
ordinárias.
II
- Esta questão – por muito paradoxal que seja – está na ordem do dia um pouco
por toda a Europa e não é necessário procurar muito para encontrar exemplos de
como as instituições financeiras internacionais fizeram do “governo das leis”
uma “real chatice”, escondendo-o na gaveta e promovendo, de forma camuflada, o
“governo dos homens”, pelo menos até á saída da crise. Entre os inúmeros
exemplos (Grécia, Itália, Espanha, Irlanda, Portugal…), observemos os recentes
acontecimentos em Portugal, onde o “governo das leis” na figura do Tribunal
Constitucional (TC), foi diabolizado pelo governo e pela troika, transformado
num bando de malfeitores, cujas malfeitorias iriam recair, de forma temível,
sobre os portugueses.
A
malfeitoria do TC foi a de ter aplicado a lei fundamental, crime de
lesa-majestade para os técnicos de contas que governam (a soldo dos gestores
financeiros internacionais) o país. A Constituição é responsável pela crise, na
óptica da Comissão Europeia, do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional
e dos seus altifalantes nacionais, o Partidos Social-Democrata (PSD) e o Centro
Democrático-Social (CDS). A estas instituições e acessórios juntam-se os
banqueiros portugueses (um deles – dos mais mediáticos – desconhecia o numero
de juízes que constituem o TC, tal é o respeito que o homem tem pelas questões
cívicas) e a burguesia nacional (sempre de mão estendida ao capital estrangeiro
e aos bancos (Camões chamou aos antecessores desta camada “Velhos do Restelo”)
para quem a Constituição é a razão das contas saírem furadas. A Constituição é
uma chatice para os guarda-livros que governam o país, que consideram que esta
coisa dos governos é como as tabernas, é só para homens, não sendo a lei
chamada para nada, bastando um policia á porta, para proteger o martirizado
contabilista que põe as contas em ordem.
Este
triste espectáculo (que mais parece uma “cegada”, que foi uma antiga forma de
teatro popular, no inicio do seculo XX em Portugal) atingiu o auge quando
alguns sectores do PSD propõem a extinção do TC, sem mais! Basta fazer a
Revisão Constitucional que irá extinguir o TC e a coisa fica resolvida de uma
vez por todas! Todo este intenso e fervoroso labor contabilístico (fervor
jesuíta, autêntico acto de fé) culmina, pois então, com a Revisão
Constitucional (substituindo a Constituição pelo Plano Oficial de Contas) e com
a ida dos juízes do TC para a fogueira e/ou para a forca.
III
- Efectivamente os portugueses estão perante um governo delinquente, que nem
sequer tenta comprovar a sua inocência perante o veredicto do juiz. O alarido
que o governo fez em torno do fim do “Programa de Assistência Financeira” (nome
pomposo para designar a capitulação) é a ostentação arrogante da delinquência.
A grande maioria da sociedade portuguesa foi espoliada, humilhada, espezinhada,
os seus direitos, liberdades e garantias foram enviados para a máquina
trituradora, sendo a cidadania limitada às colunas do “Deve” e “Haver”.
Mas
a opereta de mau gosto não teve apenas um protagonista. Para além do executivo,
o Partido Socialista (PS) líder da oposição (claro que é um dos 3 partidos do
arco da governação e do arco da troika) também envia para as urtigas o “governo
das leis”. Não que coloque em causa a Constituição (já colocou antes, quando
assinou a capitulação) mas porque perante a crise interna que o assola, o PS
faz com os estatutos internos o mesmo que o governo faz com a Constituição:
manda-os às favas. E isto é grave, porque quer dizer que o PS, caso fosse
governo, seria também um governo delinquente, ou seja, um “governo dos homens”.
O
PS está mergulhado numa crise interna, profunda. As tímidas vitórias que obteve
nas eleições autárquicas e nas europeias reflectem, por um lado, a
incompetência da camarilha que tomou de assalto a liderança do partido, por
outro a crise estrutural que afecta a social-democracia europeia, um “projecto
sem projecto”, uma manta de retalhos, um gabinete de gestores de um sistema falido.
O problema do PS não é um problema de Tós (de tirar o António que é inseguro e
substitui-lo pelo António que deu à costa). O problema maior do PS é não descer
à rua, não se apresentar junto aos trabalhadores e aos desempregados, não
aparecer nas manifestações e nos actos de protesto (o PS organizou a sua ultima
manifestação era Mário Soares o seu secretário-geral) e depois quando é governo
nada fazer e limitar-se a gerir a situação (tendo inclusive o seu ultimo
governo, assinado a capitulação do país face ao capital internacional).
O
PS prefere os “olhos nos olhos” (Ferro Rodrigues quando era secretário-geral do
PS, ao justificar a ausência do partido numa manifestação contra a intervenção
no Iraque, a que compareceram figuras como Mário Soares e Freitas do Amaral) ou
o “cara-a-cara” de António Seguro, que ficou muito aborrecido com o facto do
grupo parlamentar socialista ter apoiado uma moção de censura apresentada pela
bancada comunista, o que impediu o face to face entre Seguro e Coelho, o
primeiro-ministro. Malfeitorias…
IV
- Existe efectivamente um grave problema estrutural na sociedade portuguesa: os
Velhos do Restelo. E o problema é mais grave do que no tempo de Camões, quando
este os descreveu, sentados no cais, a assistir ás partidas das naus e caravelas.
Agora já não estão mais no cais. Agora sentam-se no Palácio de Belém…