Isabel
Moreira – Expresso, opinião
Não me lembro de não existir Cavaco. Quando Cavaco não era ainda a mais regular instituição democrática do país, a minha idade não permitia dar pela figura. Nada haveria de angustiante nisto se, tantos anos no poder, como Ministro, como Primeiro-Ministro e como Presidente da República fossem anos largos, porque o ator político é excecional. É difícil, não vivendo numa ditadura, imaginar alguém ser tudo o que se pode ser em política, de eleição em eleição, com a substância da não-substância.
Não me lembro de não existir Cavaco. Quando Cavaco não era ainda a mais regular instituição democrática do país, a minha idade não permitia dar pela figura. Nada haveria de angustiante nisto se, tantos anos no poder, como Ministro, como Primeiro-Ministro e como Presidente da República fossem anos largos, porque o ator político é excecional. É difícil, não vivendo numa ditadura, imaginar alguém ser tudo o que se pode ser em política, de eleição em eleição, com a substância da não-substância.
Um
mau Primeiro-Ministro chegou a Belém, oportunidade para brilhar nas malhas
largas que o sistema semipresidencialista oferece ao cargo (basta recordar o
génio de Mário Soares), oportunidade rejeitada, e não perdida, desde a primeira
hora, em nome de uma presidência cujo exercício, de mau, já deu azo a
teorizações acerca da bondade do nosso sistema político.
Cavaco
despreza o significado do seu cargo: ser um órgão de soberania; representar a
República; ser o garante da independência nacional, da unidade do Estado e do
regular funcionamento das instituições democráticas; defender a Constituição e
fazê-la cumprir; ou ser o comandante supremo das forças armadas. Cavaco
despreza a justificação do sufrágio universal que o elege.
Ser
Presidente da República não é para todos. Há mesmo uma idade mínima para o ser.
É coisa para gente com mínimos de maturidade política e de compreensão do pilar
fundamental do cargo, de ser aquele ou aquela que modera, que nomeia e demite
Governos e os seus membros, que, numa ponderação difícil, dissolve o
Parlamento, que veta politicamente leis e decretos-leis, que suscita a
fiscalização preventiva de diplomas, bem como a sucessiva, que nos discursos
audíveis e surdos faz pelo Regime e não contra o Regime.
Cavaco
é uma fraude. Cavaco conspirou contra um governo legitimado democraticamente,
fixando-se, nesse momento, numa trincheira armada com um Partido político que
abraçou num projeto pessoal ilegítimo.
São
coisas que a história registará. Um presidente a quem todos associarão para
sempre a "inventona" de Belém; um presidente que usou de simples
vetos políticos momentos explosivos anunciados para as 20 h da noite,
inventando uma ofensiva socialista aos seus poderes constitucionais; um
presidente que à margem dos tais poderes constitucionais nunca saiu trincheira;
um economista que se atreveu a mentir sobre as causas da crise, a bem da
narrativa da "situação explosiva" criada pelo indisciplinado governo
que assim ouviu, no discurso do Ano Novo de 2010, a bala disparada rumo
a uma nova presidência e com um governo programado a partir de Belém; um
presidente da república que rasgou o seu diploma universitário, ignorando
intencionalmente a crise internacional de 2008, a que se seguiu, os
efeitos diferenciados do euro, tudo em nome da tal da "verdade", numa
palavra, a mentira.
A
mentira pegou e Cavaco conseguiu descobrir a pólvora em 2009, que negara em
2008, ano em que surgia como "bom pai de família" e tal.
Veio
então a "verdade". Essa narrativa feita numa trincheira com pessoas
que agora a negam, caso de Manuela Ferreira Leite, estava cheia daquele bolor
moralizante que os bons costumes usam acolher.
É
a desgraça da paz social, essa coisa que já permitiu tudo, aqui e noutros
países, porque a paz social, ou a invocação dela por outras vias, sempre foi e
sempre será apetecível. Chega mesmo a deixar a vidinha caminhar enquanto um
ditador teima em durar.
Está nos livros.
Cavaco
insiste, como insistiu no outro dia, o de Portugal, país que não serve, na tese
do antes e do depois, do país sem gestão das contas públicas e no país do
rigor.
Na
trincheira, fala aos portugueses pouco tempo depois de ter permitido em conluio
com o Governo, não requerendo a fiscalização preventiva do OE, o saque durante
5 meses ao salário de funcionários públicos, salários milionários de 675 euros.
Na
trincheira, fala aos militares, àqueles cujos subsistemas foram atacados por
diploma recente, tendo Cavaco, em conluio com o Governo, feito um uso desviado
do veto político, porque sabia que este, ao contrário do veto por
inconstitucionalidade, seria, como foi, ultrapassado.
Não
me lembro de não existir Cavaco. Mas ele faz por recordar que existe, por
razões que me revoltam, enquanto republicana convicta.
O
discurso da verdade moralizante é por natureza o discurso da trincheira cavada
na valeta que enterrou qualquer razão de estado.
Tenho
para mim que a trincheira deixou esticar de mais os braços do desviado da
função. Talvez por isso, mais tarde, quando se escrever sobre Cavaco, essa
instituição tão regular a qualquer custo, já não se encontrem apologistas da
paz habitual.