Os recentes números
sobre a pobreza em Portugal não trouxeram nada de novo do ponto de vista
qualitativo: o estado da pobreza em Portugal já era escandaloso antes destes
números. Um estudo liderado por Bruto da Costa[1] que abarcou 6 anos (1995 a 2000) mostrou que
este retrato instantâneo da pobreza, que já nessa altura se situava nos actuais
18%, encobre o facto de quase metade (46%) dos portugueses ter passado pela
pobreza pelo menos num dos 6 anos em análise e 6,5% ter sido pobre todo o
período.
Em primeiro lugar,
assinale-se o atraso com que estes dados chegam ao conhecimento público: o
resultado de inquérito feito em 2013 sobre as condições de vida em 2012, é
publicado no fim de Março de 2014. Acaba por distrair no relacionar desta
informação com as medidas políticas que se vão tomando.
Depois, continuam
os eufemismos no tratamento oficial desta questão: dizer “em risco de pobreza”
em vez de pobre, quando nos referimos a um adulto que vive com menos de 409
euros mensais (para todas as despesas, habitação, alimentação, transportes,
saúde, etc.) é ocultar com palavras a realidade[2]. Viver com menos do que essa quantia mensal não é risco de
pobreza, é pobreza certa para 18,7% de portugueses, quase 2 milhões.
Para tornar mais
fácil a interpretação dos dados, procuramos traduzir as taxas e proporções em
números reais. Os cálculos não são difíceis de fazer seguindo as definições que
o INE dá, e vale a pena perceber do que estamos a falar.
Os números mostram
duas coisas: que o número de pobres aumentou em 2012 (de 18 para 18,7% da
população) embora a fasquia para se ser considerado pobre tenha baixado: em
2011 era pobre quem vivesse com menos de 416 € mensais e em 2012 já é preciso
viver com menos de 409€. Em resumo, há maior quantidade de pobres e eles são,
simultaneamente, mais pobres. O que é confirmado pela taxa de intensidade da
pobreza: metade de todos os pobres, quase um milhão de pessoas, viveram com
menos de 297 € por mês sendo adultos, 99€ no caso de serem crianças.
Agrava-se a
situação das crianças, na continuação do que já vinha detrás: à excepção de
casais com um filho único, as famílias com crianças são mais pobres que as
restantes: 22,2% no geral, mas se o adulto estiver sozinho com as crianças a
proporção sobe para 33,6% e se as crianças forem 3 ou mais, mesmo à
responsabilidade de dois adultos, sobe para 40,4%. (Perante estes números,
recorde-se o cinismo com que o governo nomeou há pouco tempo uma comissão
multidisciplinar para tratar da questão da baixa fertilidade dos portugueses.)
Os desempregados
também estão mais pobres: mais de 40% foi pobre em 2012. Há um ano o valor era
de 38%, há dois era 36%. Mas aumentaram também os que estão empregados e se
mantêm pobres: 10,5% trabalham e não saem da pobreza.
A evolução desde
2009 é pior do que à primeira vista aparece: se considerarmos a linha de
pobreza ancorada a 2009, a
proporção de portugueses pobres cresce para 24,7%: um quarto de todos
nós.
Um quarto dos
portugueses (mais de 2,5 milhões) sofrem de privação material e para mais de
10% (1,1 milhão) a privação material é severa. Isto quer dizer que não
conseguem aceder a 4 ou mais bens essenciais.[3]
Todos estes números
são apurados tendo em conta as transferências sociais, pensões, abonos e
prestações familiares. Sem estas medidas assistencialistas, quase metade de nós
seriam pobres (47%). Há dois anos atrás eram 43%, há um ano eram 45%. A pobreza
cresce sustentadamente, as medidas vão desaparecendo.
Pegue-se na questão
por onde se queira, há mais pobres e os pobres estão mais pobres. Mas os ricos
estão mais ricos: os dados publicados pelo INE e Eurostat descriminam pouco,
apenas nos dizem que os 10% mais ricos vivem com 11 vezes mais dinheiro que os
10% mais pobres. Tratando-se de médias, num e noutro caso, suavizam a
verdadeira dimensão da desigualdade que conhecemos por outras fontes: a par do
milhão que vive com menos de 409€ mensais existem os salários de topo de vários
milhares de euros e remunerações de juros. Sabemos que os três homens mais
ricos de Portugal aumentaram as suas fortunas.
Esta é a lógica do
funcionamento do modo de produção capitalista. A acumulação de um lado não se
faz sem a contrapartida da privação no outro extremo. A pobreza está longe de
ser o sintoma da doença do sistema e menos ainda o sinal do falhanço das
políticas sociais. Ela é, ao mesmo tempo, consequência e condição necessária do
capitalismo: consequência da lei inexorável da acumulação da riqueza e condição
para a sua manutenção, porque os pobres não são mais do que o exército de
reserva (desempregados ou baixíssimos salários), que mantêm os salários nos
níveis desejados, isto é, baixos, o mais baixo possível.
Por isso, esperar
que o governo (este ou qualquer outro dentro do sistema) resolva o problema é
como acreditar no pai natal: era tão bom se existisse mesmo! Se olharmos para o
mundo ocidental, se olharmos para as economias mais ricas e desenvolvidas, os
países da OCDE, a UE, os relatórios e estatísticas mostram o mesmo: a
desigualdade (aqui, eufemismo para persistência de pobreza) aumenta desde há 40
anos, ao mesmo tempo que o crescimento económico. Nas economias mais desenvolvidas
e equilibradas da Europa (os nórdicos), a pobreza persiste em níveis entre 10 e
12%, [4] demonstrando que boas intenções e relatórios não bastam.
As chamadas
políticas sociais têm-se revelado a prazo incapazes de fechar a chaga da
pobreza, em Portugal e no mundo. Onde a competição impera não podemos esperar
que a solidariedade vingue. Nem diminuição progressiva, erradicação muito
menos. Mais do que um subproduto do funcionamento do sistema, os pobres são
parte integrante dele e têm a função simbólica de materializar o cenário de
caos com que nos acenam todos os dias. Mas se olharmos atentamente para eles e
sobretudo se os olharmos como iguais, o que vemos é o caos que este sistema
semeia e produz, inevitavelmente.
* Investigadora,
co-autora de A Segurança Social é Sustentável. Trabalho, Estado e Segurança
Social em Portugal (coord. Raquel Varela, Bertrand, 2013)
Notas
[1] Costa, AB (coord) et al. Um olhar sobre a pobreza:
vulnerabilidade e exclusão social no Portugal contemporâneo. Gradiva
Publicações, Lisboa, 2008.
[2] O Eurostat tem alterado, no decurso das últimas duas ou
três décadas, tanto os valores de definição da pobreza como a própria
designação dessa condição até à substituição da palavra “pobre” pela expressão
higienizada e imprecisa “em risco de pobreza”.
[3] Condição do agregado doméstico privado no qual se
verifica a carência forçada de pelo menos quatro dos seguintes nove itens,
devido a dificuldades económicas: a) capacidade para assegurar o pagamento
imediato de uma despesa inesperada e próxima do valor mensal da linha de
pobreza (sem recorrer a empréstimo); b) capacidade para pagar uma semana de
férias, por ano, fora de casa, suportando a despesa de alojamento e viagem para
todos os membros do agregado; c) capacidade para pagar atempadamente rendas,
prestações de crédito ou despesas correntes da residência principal, ou outras
despesas não relacionadas com a residência principal; d) capacidade para ter
uma refeição de carne ou de peixe (ou equivalente vegetariano), pelo menos de 2
em 2 dias; e) capacidade para manter a casa adequadamente aquecida; f)
capacidade para ter máquina de lavar roupa; g) capacidade para ter televisão a
cores; h) capacidade para ter telefone fixo ou telemóvel; i) capacidade para
ter automóvel (ligeiro de passageiros ou misto).
[4] Ver o Relatório da Primavera 2013 do Eurostat e Relatório
2008 da OCDE: “Growing unequal?”