Em estranha
reviravolta, entidade que deveria dedicar-se a esporte converteu-se em monstro
comercial, pronto a impor obrigações aos povos
Marcos de Azambuja,
na Piauí – Outras Palavras
“Abajo el Fondo!” A
mensagem que vi rabiscada na parede de um banheiro público de Buenos Aires, nos
idos de 1970, era compreendida por todos os usuários e só podia ter um
destinatário. O Fundo alvo daquela ira era o Fundo Monetário Internacional –
filho das históricas negociações de Bretton Woods, sediado em Washington e
capitaneado, desde a sua criação, por uma sucessão de europeus então ditos
“ocidentais”, como era costume nos tempos da Guerra Fria. Tinha como tarefa
promover a cooperação monetária global, assegurar a ordem financeira, promover
a estabilidade das taxas de câmbio e auxiliar seus membros a enfrentar
dificuldades da balança de pagamentos. Finalmente, incumbia ainda ao Fundo
estimular o comércio dentro de regras de aceitação mais ou menos geral. Essa
declaração de missão era altissonante e virtuosa; a realidade, bem mais modesta
e qualificada.
Seu irmão gêmeo era
o Banco Mundial, também com sede em Washington, chefiado, desde então, por uma
outra linha dinástica: a de eminentes financistas, banqueiros e homens públicos
norte-americanos. Como primo dessas duas agências fundamentais, veio pouco
depois, temporão, o GATT – hoje transformado na Organização Mundial do Comércio
(OMC) e aberto, faz pouco tempo, a uma chefia que, agora pela segunda vez, não
se origina em uma das duas margens do Atlântico Norte. Isso permitiu que
Roberto Azevedo, do Brasil, conduza hoje os seus destinos.
Antes, ainda no
intervalo entre as duas grandes guerras, foi criado na Basileia o Banco de
Compensações Internacionais, com o qual se completa o leque das grandes
organizações que atuam no campo das finanças mundiais.
As Nações Unidas,
elas também, foram o mais abrangente produto da mesma grande fornada que
organizou o mundo naquele período de grande redesenho político e econômico das
relações internacionais quando terminava a Segunda Guerra Mundial. Embora na
ONUíses que são membros permanentes e detêm o direito de veto no Conselho de
Segurança, que é onde se resolvem as coisas sérias, sobrou do impulso
democrático de Woodrow Wilson e da efêmera e malfadada Liga das Nações a
paridade do peso dos votos de cada país na Assembleia Geral, sejam eles
grandes, médios, pequenos ou minúsculos. Faço essa digressão porque vivemos
ainda dentro da moldura do que foi feito no fim da Segunda Guerra Mundial. Mais
uma vez, a violência foi a parteira da história e os quase setenta anos de paz
desde então não permitiram que se construísse um edifício melhor e mais sólido.
Deixo de lado a grande arquitetura diplomática de nosso tempo, hoje desgastada
e enferrujada, e peço licença para voltar ao banheiro portenho onde o FMI era
vilipendiado.
A pichação de
banheiros públicos tem uma longa tradição e mesmo uma certa ortodoxia em sua
temática – pornográfica ou não. E isso vem desde a Roma antiga, como se pode
ver até hoje em Pompeia. Ataques a organizações financeiras internacionais não
costumam enfeitar suas paredes. O sexo e sua oferta, gratuita ou remunerada, é
o tema quase exclusivo dessa arte mural.
A inscrição sobre o
Fundo era o reconhecimento de como sua presença e ação eram influentes e
incômodas, e atingiam o que havia de mais sensível à vida política de um país.
De alguma forma, a
inscrição era uma forma paradoxal de homenagem. O FMI era visto como o
instrumento por excelência de intervenção das grandes potências nas confusas e,
em geral, mal administradas economias dos países que a ele recorriam em
diferentes estágios de descrédito e aflição. Países que foram sendo promovidos,
ao longo dos anos, pelo menos verbalmente, da categoria inicial de atrasados
para a de subdesenvolvidos, elevados depois à condição de países em
desenvolvimento. Agora, finalmente, vemos que uns poucos, inclusive nós,
tiveram seu status transposto para a categoria bem mais prestigiosa de países
emergentes. A realidade subjacente que separava e separa os pobres dos ricos
não mudou tanto ao longo dos anos, mas os rótulos que descrevem os pobres foram
ficando, com o tempo, cada vez mais politicamente corretos.
Naqueles idos, o
FMI tinha preceitos categóricos e um conjunto de certezas que, no mais das
vezes, ignorava circunstâncias e especificidades locais. Seus enviados
(“fiscais” seria talvez a designação mais correta) costumavam ser burocratas de
hierarquia intermediária, geralmente sem treinamento ou experiência relevante
em negociações internacionais e sem maiores credenciais acadêmicas. Ao chegarem
aos seus destinos, eram elevados (e isso é especialmente verdade no caso
brasileiro), por uma atenção intensa da mídia local, a uma posição de
visibilidade e pretendida influência que nunca imaginaram poder ter em suas
bases de origem. Eram, muitos deles, ingenuamente arrogantes.
Naquele tempo
costumava ser muito menos comum do que hoje desconfiar da sabedoria e da
previdência que se imaginava existir nos países ricos. Aceitava-se, com
naturalidade, que entre eles e nós havia um hiato que nos fazia, em qualquer
controvérsia e de maneira quase que automática, a parte defeituosa ou culpada.
Essa percepção foi se alterando com o passar dos anos, à medida que os países
industrializados se metiam em sérias trapalhadas e, para sair delas, passaram a
transferir boa parte do ônus de suas correções e o preço de seus desacertos
para os ombros dos países mais fracos.
Ao lembrar os
agentes do FMI entre nós naqueles dias, a lente reducionista do tempo me faz
recordá-los, essencialmente, como burocratas de comportamento essencialmente
dis-creto e, em alguma medida, homogê-neo. Não mostravam traços próprios
acentua-dos e eram, certamente, pouco frondo-sos e coloridos em sua aparência e
em vestuário. Muito diferentes eram os representantes dos grandes bancos
credores, alguns dos quais tinham exuberância no gesto e uma evidente
autoconfiança na fala. Arquétipo foi Tony Gebauer, venezuelano de origem e
nova-iorquino por escolha. Tinha nos charutos e nos suspensórios vistosos a
marca registrada de sua autoconfiança e de sua autoestima. Foi, por um tempo, o
responsável principal pela gerência da nossa dívida. Acabou condenado pela
Justiça.
Os charutos estão,
de fato e de direito, banidos dos lugares de trabalho e de convívio. Os
suspensórios, enfeitados com símbolos do dólar e da libra esterlina, saíram de
moda e não são mais parte do uniforme imaginário dos então donos da verdade e
senhores do universo.
Foi em 1971 que os
Estados Unidos, pressionados por enormes gastos e não menores derrotas no
Vietnã, abandonaram a conversibilidade a taxas fixas entre o dólar e o ouro.
Poucos anos depois, no contexto do chamado “choque do petróleo”, deu-se a
elevação dramática das taxas de juros norte-americanas, levando o Brasil e
vários outros países que haviam contraído grandes dívidas em dólares a
ingressar num longo ciclo de turbulência e insolvência. As sucessivas crises de
pagamento da dívida se estenderam por quase três décadas e deixaram
traumatizada mais de uma geração de brasileiros.
O FMI tinha um
receituário de aplicação geral. Enganou-se várias vezes não só sobre o remédio
a ser empregado, como sobre a dose a ser prescrita. Produziu bons resultados,
em alguns casos, menos pelo talento de seus agentes e pela sabedoria de suas
receitas do que pelo constrangimento que criava, induzindo os governos monitorados
a fazer finalmente e melhor o que deviam ter feito antes, de forma espontânea:
adotar políticas sóbrias e sensatas para remediar situações que haviam levado
seus países a graus diferentes de ingovernabilidade, quase sempre por causa
daquela combinação tóxica, mas demagogicamente irresistível, de populismo,
nacionalismo exaltado e desrespeito pelos contratos e compromissos assumidos.
Fui ao Palácio do
Planalto em um fim de tarde – já muito distante – para tratar de algum assunto
urgente durante a presença de uma das missões de fiscalização do FMI entre nós.
Encontrei, instalada em uma sala cuja localização e dimensões indicavam o
prestígio que atribuíamos ao ocupante circunstancial, uma representante do
Fundo. Operando na própria sede do nosso governo, monitorava dali o que
fazíamos. A imagem dessa situação humilhante não é fácil de esquecer.
O FMI, não é
preciso dizer, não tem mais o poder que tinha. E a relação do Brasil com ele
sofreu uma decisiva modificação. Passamos da condição de país devedor à de credor.
Ampliamos nossas contribuições, temos maior peso e qualquer revisão futura de
normas e práticas deverá levar em conta as nossas expectativas, ao lado de um
punhado de outros grandes países que estão mudando a repartição do poder
mundial.
Não encontrei em
safras recentes, em muros e paredes brasileiros, palavras de repúdio ao FMI.
Para nós, o Fundo simplesmente importa menos. Sofre ainda as ondas de choque
causadas pelo afastamento de seu diretor-geral, Dominique Strauss-Kahn, em
circunstâncias vexatórias, e procura agora recuperar o prumo e a credibilidade
com a administração de Christine Lagarde.
Teve papel pouco
significativo em toda a crise financeira que começou em 2007. Os recursos
exigidos para enfrentar os problemas estavam muito acima do seu caixa; suas
antigas receitas, testadas nas crises dos países periféricos, encontraram pouco
espaço no encaminhamento de uma questão que se originou quase exclusivamente no
mundo industrializado de onde nos vinham antes tantos conselhos. O G-20, de
invenção muito mais recente, teve que ser chamado e, mais uma vez, foram os
Estados Unidos que demonstraram sua posição dominante no cenário financeiro
mundial.
Talvez na parede de
algum banheiro público grego, espanhol ou português – suas vítimas de hoje –, o
FMI seja ainda alvo de uma indignada rejeição. Sua receita de austeridade,
formulada com algum simplismo, continua a ser, em muitos casos, inadequada como
panaceia e cruel nas doses recomendadas.
Na recente e
explosiva mobilização da opinião pública brasileira e no extenso e veementecahier
de doléances [lista de reclamações] de nossas insatisfações, o FMI não mais
aparece como vilão. Agora, como expressão de um novo poder, ainda menos
legítimo e transparente, vamos encontrar a Fifa – Federação Internacional de Futebol,
presunçosa e intrometida, transformada em grande estrela no cenário mundial,
com direito até a bandeira e hino, coisa que o FMI, mesmo em seus momentos mais
afoitos, nunca pretendeu ter. Não ouvi falar ainda de nenhum banheiro nosso
pichado com palavras de repúdio à entidade que controla o futebol mundial, mas
não duvido nada que esses registros já existam.
Vi nas imagens das
muitas manifestações não um, mas muitos cartazes que identificam na Fifa um
provedor de circos caros e seletivos, que desvirtua a sabedoria do Conselho de
Roma, segundo a qual ao povo devia ser oferecido pão e circo.
Um desses cartazes
de protesto simplesmente dizia: “Eu não votei na Fifa”; outro, ainda mais
agressivo e sintético, dizia apenas: “Fifa da Puta” – o que me pareceu
transmitir um sentimento difuso, mas muito presente nesta geração que tem
desafiado as prioridades e os critérios governamentais no uso de recursos
públicos.
Não é fácil saber
com clareza como a Fifa opera e quais são seus rendimentos. Com sua sede em Zurique,
uma cidade que cultiva a opacidade, e sem os constrangimentos e obrigações a
que outras organizações públicas ou privadas são submetidas, a organização
controla hoje o mais universal e popular dos esportes, provavelmente a
atividade lícita que gera os maiores lucros e as mais poderosas emoções e
paixões em todas as partes do mundo.
Um dos grandes
talentos da Suíça, ao longo dos anos, tem sido o de acolher organizações
desenhadas para procurar controlar, em escala mundial, importantes atividades
ou procedimentos. Em uma ponta do espectro estão entidades de manifesto valor
humanitário, como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha e o Alto Comissariado
das Nações Unidas para os Refugiados. Na outra ponta, estariam o Fórum
Econômico Mundial, de Davos, a Organização Internacional para Padronização
(ISO), em Genebra e em Zurique, e aquilo que aqui nos interessa, a Fifa, que se
desta-ca entre outras poderosas máquinas de ganhar dinheiro.
Valendo-se de uma
cultura e de uma tradição que protege o sigilo e resiste a disclosures – vale
dizer a “revelações embaraçosas” –, a Suíça oferece um hábitat ideal para
aquelas atividades que preferem a discrição e a sombra. O objetivo de muitos
que ali operam não é fazer alguma coisa melhor do que outros fariam ou com uma
melhor relação de custo–benefício, mas, antes, oferecer serviços discretos e
confiáveis, sujeitos ao menor número possível de indagações embaraçosas.
Na coluna dos
valores positivos, a Suíça tem coisas a oferecer: uma centralidade geográfica
quase que ideal na Europa; a beleza de sua paisagem; a segurança e o conforto
de suas cidades; o discreto, mas implacável, controle pelas autoridades
policiais sobre quaisquer atividades que possam representar alguma medida de
risco ou desordem.
Qualquer país que
pretenda receber uma Copa do Mundo tem hoje, cabe reconhecer, uma mão
negociadora fraca. A posição de poder da Fifa é tal que ela não se sente
obrigada a ceder ou até mesmo a mostrar flexibilidade. Não faltam candidatos
para sediar os eventos máximos do futebol mundial. Já estão escolhidos a Rússia
para a Copa de 2018 e o Catar para a de 2022. Não foram poucos nem frágeis, em
ambos os casos, os candidatos derrotados ou desencorajados a competir. Como
todo império em fase de afirmação, a Fifa se expande. Controla hoje as Copas do
Mun-do de Futebol, masculina e feminina, a Copa das Confederações, a de Futebol
de Areia, a Copa do Mundo de Futsal, os campeonatos Sub-20 e Sub-17 dos dois
sexos, a Copa do Mundo de Clubes. Faz tudo isso apoiada sobre uma estrutura de
poder de dirigentes (“cartolas” seria a palavra datada que melhor os descreve)
em boa parte navegando acima dos 70 anos, que mostram uma surpreendente
disposição de se perenizar por meio de sucessivas reeleições.
Quem controla uma
Copa do Mundo controla – é desnecessário dizer – todas as etapas seletivas que
precedem o evento maior. Resumindo: tanto no plano horizontal quanto vertical a
Fifa é hoje, em todos os sentidos, a dona da bola.
Também como
acontece com os grandes impérios, a Fifa soube se cercar de patrocinadores que
são pode-rosos aliados. Em algum momento, porém, e talvez próximo, a expansão
do poder da Fifa e sua apropriação crescente do controle do futebol tenderão a
ser desafiadas por alguma estrutura rival ávida de partilhar os lucros e o
monopólio. Os escândalos e as denúncias envolvendo a entidade deverão se
acumular, tanto em termos corporativos quanto pessoais, de maneira
irresistível. Acredito que, em algum momento, a cúpula da Fifa irá receber um
previsível cartão vermelho.
Antes que isso
aconteça – a julgar pela lição do passado tantas vezes repetida –, será talvez
a própria Fifa que perderá a ideia de seus limites. Disso deu sinal seu
presidente, Joseph Blatter, na partida inaugural da Copa das Confederações, em
Brasília, quando repreendeu em portunhol o público, pedindo que tivesse
respeito e mostrasse fair-play com a presidente Dilma Rousseff. A vaia, que até
aquele momento era apenas convencional, tornou-se então uma vaia
verdadeiramente digna do nome. Nossa presidente mostrou juízo e sangue-frio.
Dispensou a não solicitada mediação helvética e preferiu abreviar o
procedimento com uma só frase, pela qual apenas declarava aberto o torneio,
ponto final. Escaldada como deve estar, é pouco provável que voltemos a vê-la
(ou ouvi-la) em qualquer estádio, até o fim de seu mandato.
Dizia Nelson
Rodrigues que no velho Maracanã até minuto de silêncio era vaiado. Não imagino
que isso tenha mudado com as reformas. As exortações da Fifa só terão efeito de
reforçar um comportamento que, também desde a Antiguidade clássica, faz dos
estádios um lugar que os políticos devem usar com extrema moderação e, se
possível, de forma não conspícua e silenciosa.
Não estou
seguramente informado sobre os custos adicionais, legítimos ou não, que o
Estado brasileiro assumiu na construção ou modernização dos doze estádios em
que se jogará a Copa de 2014. Esse torneio, disputado nas duas últimas copas em
nove locais, será agora, por impulso nosso, ampliado para que seja jogado em
doze cidades diferentes. Com isso foram atendidas, suponho, as pressões de
governadores, prefeitos e os interesses de construtores e empreiteiros.
É fácil entender,
em um país do nosso tamanho, os motivos que levam a essa expansão de sedes e de
custos, mas é também fácil entender como essas ambições federativas,
regionalistas ou apenas empresariais inflacionaram brutalmente os gastos e
tornaram muito mais complexa a logística do evento.
Para pouca sorte
dos que conseguiram que a disputa viesse até nós, a etapa final de preparação
para o grande evento parece ocorrer em um momento em que no Brasil está
acontecendo uma mudança verdadeiramente tectônica. O futebol continua a
provocar entre nós o interesse e a adesão entusiasmada de sempre, mas os seus
resultados não parecem mais se projetar para além do próprio universo do jogo.
As expectativas e emoções ficam como que encapsuladas no terreno da própria
disputa esportiva. Minha impressão é que futebol e política tenderão a estar no
Brasil, a partir de agora, desacoplados. Isso, suponho, será bom para o futebol
e bom para a política.
Assistimos, na Copa
das Confederações, a um novo fenômeno. O Brasil comemorava dentro dos estádios
a qualidade e o conforto das instalações, o jogo bonito e, sobretudo, as nossas
vitórias. Mas, do lado de fora, uma nova agenda era proposta e defendida. Valores
de uma sociedade comprometida com o combate contra a corrupção, com escolas e
hospitais de qualidade – no “padrão Fifa”, como se viu nos cartazes nas ruas –
não foram afetados pelo entusiasmo das arquibancadas. Em outras palavras: o
futebol continua a nos divertir e empolgar, embora não baste mais para definir
uma sociedade hoje bem mais complexa, mais do que nunca com aspirações de outra
natureza.
Num momento em que
o crescimento acelerado da nossa economia parecia assegurado, fizemos um
intenso lobby para atrair a Copa, os Jogos Olímpicos e um punhado de outros
grandes eventos. É lícito supor que os governantes tenham se fiado na convicção
de que uma opinião pública entretida nos campos de jogo iria desviar os olhos
de todo um processo caro, quando não irregular, utilizado para a montagem
desses megaeventos.
Hesito em criticar
o que foi feito apenas como expressão de uma vocação para o gigantismo
irresponsável. Quase toda obra que vi ser feita no Brasil sofreu no começo a
acusação de ser superdimensionada e mesmo desnecessária. Vi depois, como em
poucos anos, o que parecia desmesurado ficar pequeno para atender a uma demanda
que, entre nós, não para de crescer. Sei, também, como é difícil hierarquizar a
importância do lazer nos gastos públicos e como não é fácil inscrevê-lo em
qualquer coluna de prioridades.
O sambódromo do Rio
talvez seja o exemplo mais eloquente disso. É utilizado apenas algumas poucas
noites por ano para o fim a que se destinou quando criado. Entretanto, sua
construção inventou uma demanda, criou uma imagem, levou outras cidades a
imitarem o modelo – e hoje seria uma heresia e até um disparate demoli-lo. Um
velho e austero senador romano no seu tempo teria dito, provavelmente, coisas
terríveis sobre os gastos e a inutilidade do Coliseu. E ele, glorioso, continua
lá. Mesmo as pirâmides (digam os egípcios e os mexicanos de hoje) não foram,
afinal, uma tão má ideia.
Não vejo como, a
esta altura, procurar reverter decisões e procedimentos. Nem como voltar atrás
de compromissos formalmente assumidos. Estamos embarcados em um calendário
exigente, que impede que se possa pensar em não receber o papa, driblar a Fifa
ou fugir do Comitê Olímpico Internacional. Ainda acho que seja possível, no
entanto, criar um pequeno grupo de assessoria do ministro do Esporte. Ganharia
ele e ganharíamos todos nós se um grupo de provados negociadores com
experiência nas transações financeiras e em políticas internacionais estivesse
disponível para trazer a ele – mesmo que informalmente – o benefício de seu
conselho e de sua experiência.
Fui um dos mais de
150 mil espectadores do fiasco de 1950 no Maracanã. Tinha 15 anos e serei hoje,
imagino, um entre alguns poucos milhares de sobreviventes. Nunca participei de
uma procissão mais triste do que aquela em que estávamos todos embarcados ao
descer as rampas depois da derrota. Desde então vi o Brasil ser campeão cinco
vezes. Pessoalmente, estou consolado e vingado, mas não saciado. Uma nova
vitória, desta vez em casa e no mesmo lugar, provocaria em mim um prazer
inefável.
Reconheço o que a
Fifa tem feito para trazer aos estádios pontualidade, conforto e uniformização
de práticas e procedimentos. Gostaria que ficassem nisso e que sua autoridade
não fosse além de definir a duração de cada hino nacional. Estaria mesmo disposto
a aceitar, com algum pesar, que os hinos fossem abandonados (o da Fifa deveria
ser o primeiro), como desapareceram as bandas militares que antes os executavam
nos estádios.
De tudo o que
aconteceu até agora, o que me lavou a alma foi aquele momento triunfal do
espírito libertário que vivemos ao ver o nosso hino, depois de esgotado o tempo
rigoroso que lhe foi concedido, continuar a ser cantado, como se dizia
antigamente, “no gogó” (expressão que parece mais eloquente e apropriada do que
a erudita “a capela”), e que, ao fazê-lo, mostrássemos os limites que estamos
dispostos a aceitar em nome da organização. Há mesmo um milagroso ganho
colateral: que a Fifa nos esteja ajudando a aprender de cor a letra do hino
nacional.
Além de um certo
ponto, mesmo para a Fifa é temerário esquecer que os estádios são lugares de
liberdade onde presidentes são vaiados e o hino é cantado com emocionante
fervor. Inventamos um futebol jogado com imensa alegria e criatividade. Não
vamos nos afastar desse caminho. Não somos no final das contas a Suíça, onde,
como se costumava dizer, tudo o que não era proibido era obrigatório.