Raquel Varela
defende em seu mais recente livro que os trabalhadores não deve arcar com o pagamento
dos juros da dívida pública
Portugal e Espanha
vão protagonizar, a partir desta quarta-feira (14/11), uma ambiciosa greve
geral que pretende mobilizar todos os países do sul da Europa afetados pela
crise da zona do Euro. Milhões de trabalhadores são esperados para protestar
contra as medidas de austeridade fiscal impostas aos seus governos pela Troika
– grupo formado por FMI (Fundo Monetário Internacional), Comissão Europeia e
BCE (Banco Central Europeu).
Desde o início da
crise financeira mundial, em 2008, a Zona do Euro presenciou fases de
estagnação e recessão econômica, crises políticas, implosão de suas dívidas
soberanas nacionais, altas taxas de desemprego e, principalmente, uma forte
tendência de corte em direitos sociais e trabalhistas da população. A
justificativa dada pelos governos é que essas medidas são fundamentais para que
os países atinjam um equilíbrio fiscal e, consequentemente, receberem aportes
financeiros da Troika – dedicados a pagar os juros dessas dívidas e salvar as
principais instituições financeiras desses países da bancarrota.
No entanto, sindicatos, estudantes, acadêmicos e outros setores progressistas
dos países mais afetados se articulam para, além de resistir a essas
imposições, desconstruir os discursos utilizados pelos defensores da
austeridade, que alegam que os países em pior situação (notadamente Grécia,
Portugal, Espanha, Itália e Irlanda) se encontram endividados porque, por anos,
gastaram mais do que tinham
Em Portugal, uma das principais oponentes desse discurso é a historiadora
Raquel Varela que, em seu mais recente livro, “Quem Paga o Estado Social em
Portugal”, lançado em terras lusas no mês passado, não só defende a moratória
da dívida como também afirma que a população do país não deve absolutamente nada.
Em entrevista ao Opera Mundi, a professora da ISSH (sigla em inglês para
Instituto Internacional de História Social, em Amsterdã) explica as razões e as
contradições da crise atual, além de lembrar exemplos históricos, como a
Revolução dos Cravos, em 1974, que marcou o fim da ditadura, quando a população
se mobilizou para tomar o controle das empresas e retomar o crescimento.
Opera Mundi: A primeira pergunta é inevitável: quem paga o Estado Social em
Portugal?
Raquel Varela: São os trabalhadores. Como? Dividimos aquilo que é contabilizado
pelo Eurostat (Gabinete de Estatísticas Europeu ) e pelo INE (Instituto
Nacional de Estatística) português como a massa salarial pelo que é a
"massa do capital" – renda, juros e lucro. Para isso, contabilizamos
todos os gastos do Estado, como recursos humanos, saúde, educação, gestão dos
espaços públicos, esportes, cultura, Previdência Social, etc. É preciso deixar
claro que há muitos aspectos que não podem ser contabilizados, como os gastos
dos pais com os filhos ou ajuda aos mais idosos. Afinal uma sociedade não se
mede por quem paga e quem recebe.
Chegamos à conclusão que os trabalhadores, responsáveis pela massa salarial,
pagam todos os seus gastos sociais e, em boa parte dos anos, ocorre superávit.
Ou seja, também pagam mais do que recebem. Depois fizemos uma segunda avaliação
e vimos que, nos anos em que houve um ligeiro déficit, ocorreu também um
massivo processo de transferência de recursos públicos para o setor privado.
Muito daquilo que é considerado gasto social é, na verdade, subsídio ao setor
privado. Um exemplo claro é com o SNS (Serviço Nacional de Saúde), órgão
responsável pela saúde pública em Portugal que, até dois anos atrás, era
gratuita e de excelente qualidade. Metade do valor dele vai para hospitais públicos
de gestão empresarial. Desde que se introduziu esse mecanismo de gestão,
observamos que, a medida que decresce a contratação de médicos e enfermeiros,
aumenta a subcontratação externa por empresas privadas.
Os bancos e outras grandes companhias, como a Portugal Telecom, deram seus
fundos de pensões, cuja capitalização não é clara, para o Estado administrar.
Provocaram um rombo na Previdência Social, porque obviamente esses fundos
estavam sujeitos à especulação. E, em um futuro a médio prazo, de dez a 20
anos, não teriam sustentabilidade. Mas também contabilizamos a produtividade
dos serviços feitos pelos privados. E verificamos que esses serviços são mais
caros e menos eficientes do que os utilizados pelo poder público. Isso nos leva
a concluir que parte do valor destinado à gestão privada é desviada para a
obtenção de lucro, e não para a eficiência na prestação desses serviços.
OM: Ao mesmo tempo, as empresas em Portugal alegam estar falidas e fazem mais
pedidos ao governo, como redução de impostos. Afinal, onde foi parar todo o
dinheiro cedido a elas?
RV: Creio que a gente, em 2008, observou uma crise clássica e cíclica do
capitalismo que trata de uma queda da taxa de lucro. Muitas dessas empresas
entraram em um processo de deflação e estariam falidas se não tivessem ajuda
pública. É a contradição do capitalismo: se queremos salvar as empresas
privadas, então condenemos os trabalhadores à miséria. O programa de
intervenção do FMI aqui é eufemisticamente chamado de “resgate” ou “ajuda”
[como na imprensa tradicional brasileira]. Mas fomos de dois milhões de pobres
para três em dois anos, em uma população de 10,5 milhões.
O capitalismo é
como um doente em coma sobrevivendo por aparelhos. E esses aparelhos são os
fundos públicos. Cai por terra o mito da eficiência da iniciativa privada,
quando as empresas não vivem sem massivas ajudas públicas que, no limite, vão
ser buscadas no único lugar que produz riquezas, ou seja, no salário.
Em última instância, estão a transformar o sul da Europa em uma periferia
baseada em baixos salários e intensa exploração da força de trabalho. A ideia é
quebrar o consumo interno, baixar o custo do trabalho e virar toda a economia
para um setor exportador.
OM: A senhora concorda com a realização de uma auditoria pública e independente
para calcular o montante da dívida considerado justo?
RV: Nenhum Estado pode apresentar uma dívida aos seus cidadãos sem explicar
como, porquê e em benefício de quem a contraiu. Esse é o mecanismo clássico da
chamada auditoria cidadã: a abertura dos livros de contas do Estado. Me parece
absolutamente básico que, em qualquer sociedade democrática, quem paga tenha
acesso às contas.
Mas o fator central é analisar a questão não como uma dívida pública, mas como
um mecanismo de acumulação privada de capital, como uma renda fixa. A auditoria
cidadã é uma demanda absolutamente necessária, justa e urgente. Mas não é
necessário fazê-la para se chegar à conclusão de que os trabalhadores não têm
nenhuma dívida. Se eles pagam todos os seus gastos sociais, é óbvio que a
dívida tem que recair para outros mecanismos de acumulação, que não a
existência do bem-estar social ou o fator salário. Do ponto de vista histórico,
a dívida hoje, perante a desvalorização massiva de capitais na produção com a
crise de 2008, é uma renda fixa garantida a partir do juro que é pago.
Nem deveríamos falar de dívida pública, porque ela agora é uma renda fixa
privada, é disso que se trata. Chamar de “dívida” remete à honestidade dos
trabalhadores. As pessoas honestas pagam as suas dívidas. É uma forma de roubo
do salário.
OM: Um dos argumentos utilizados pelo governo de Pedro Passos Coelho [atual
premiê, líder do conservador Partido Social-Democrata] é de que Portugal se
veria impossibilitado de ter acesso a investimentos estrangeiros. A senhora
concorda com essa informação, há outra alternativa ao pagamento dessa renda
fixa, também conhecida como dívida pública? O fato de Portugal pertencer à zona
do Euro também não dificulta esse cenário?
RV: Esse argumento funciona como uma chantagem, não corresponde à verdade.
Porque quem mais sofreria com a interrupção do pagamento da dívida seria a
Alemanha, onde a sustação do pagamento da dívida iria provocar pânico.
O mercado europeu hoje é um mercado único, e a Alemanha tem cerca de metade do
seu PIB como fruto de exportações para a Europa. Qualquer medida [de rebeldia]
do ponto de vista econômico em Portugal iria causar pânico no norte da Europa.
É por isso que a Alemanha está constantemente a ameaçar que não vai financiar
um segundo aporte. Ao mesmo tempo em que faz essa ameaça, está a transferir
dinheiro ao sistema financeiro. O maior medo da Alemanha é saber que o colapso
de qualquer país da zona Euro significa também o colapso do Mecanismo de
Estabilização da Zona Euro e, consequentemente, a crise a atingiria.
E há uma questão política: Portugal é um país que tem 5,5 milhões de
trabalhadores, quase 1,5 milhão com educação superior, é um país urbanizado,
com escolaridade. A burguesia europeia teria muita dificuldade em conseguir
isolar um país como Portugal. A verdade é que a sustação da dívida seria a
condição necessária para que os trabalhadores possam, neste momento, vencer
essa situação. Seria um contágio, uma forma de resistência absolutamente
necessária. Mas isso me parece mais propício de ocorrer na Grécia, daqui a dois
ou três anos, do que em
Portugal. E, infelizmente os partidos da esquerda parlamentar
portuguesa defendem a renegociação da dívida, enquanto nós [os autores do
livro] defendemos a moratória.
OM: Qual foi o
verdadeiro embrião da crise da dívida? Quando, de uma hora para outra, o país
se encontrou insolúvel?
RV: Até 2008, Portugal não tinha problema nenhum com sua dívida pública. Mas
ela cresceu de forma exponencial após as ajudas ao setor financeiro. Essa
socialização dos prejuízos dos capitalistas, dos bancos e do setor financeiro
que faz disparar a dívida pública que, até então, não era um problema.
OM: Durante a Revolução dos Cravos, em 1974, Portugal também enfrentava uma
séria crise econômica, com taxa de desemprego alta. Mas a população soube se
mobilizar e encontrar soluções para produzir e gerar empregos. Como isso
ocorreu e como esse fenômeno pode inspirar a população hoje?
RV: Em 1974, Portugal sofria com os efeitos da crise do petróleo no ano
anterior. Ocorria um processo muito forte de descapitalização de empresas.
Muitos empresários saíam do país e fechavam seus estabelecimentos, em processo
semelhante ao que ocorre agora. A diferença é que hoje não temos um processo revolucionário,
de ruptura, como ocorreu na época.
Nesse período, os trabalhadores se organizaram em comissões e, por muitas
vezes, ocupavam a fábrica abandonada pelo patrão, não deixando que ele
retirasse as máquinas e os meios de produção. Eles assumiam a gestão, já que
tinham uma carteira de clientes. Claro, também fizeram um pressão política
muito grande obrigando o Estado a capitalizar as empresas abandonadas. O
dinheiro público naquele tempo foi utilizado em grande parte para isso.
Os trabalhadores também impuseram a nacionalização dos bancos, o que teve um
efeito muito grande na dinamização da economia. Tanto que, em 1975,o país se
encontrava em fase de crescimento.
Esse fenômeno não se passa nos dias de hoje. Há manifestações todos os dias,
greves setoriais, mas não um movimento geral de duplo poder, com os
trabalhadores assumindo a gestão e a produção de seus locais de trabalho.
OM: No primeiro semestre, tivemos uma novidade quando, na Grécia, país que
passa por uma crise até mais grave do que Portugal, uma coligação de esquerda,
o Syriza, por pouco não obteve o controle do Parlamento. Seu líder, Alexis
Tsipras, havia prometido rompimento com as políticas da Troika. Por que, em
termos eleitorais, o discurso da esquerda portuguesa (Bloco de Esquerda e Partido
Comunista Português) não consegue atingir uma parcela mais significativa da
população?
RV: Me parece que a esquerda portuguesa, notadamente esses dois partidos, se
centram muito na questão da renegociação da dívida e na volta do pacto social,
e não em uma denúncia sistêmica. E a população, em grande medida, parece mais
radicalizada do que eles. Isso pode ter algum efeito em um afastamento grande,
sobretudo nos setores mais jovens dessa esquerda.
Creio que essa juventude mostra agora uma grande desconfiança em relação ao
regime democrático, embora gritem dizeres como “Democracia Real Já!”. Para a
geração de 50 e 60 anos, o voto era uma conquista. Esses jovens vivem em
situação precária, sem direitos trabalhistas. Para eles, a relação com o
Parlamento não é sólida, não é lá que eles veem a saída para os seus problemas.
OM: E quanto à Social-Democracia?
RV: O Partido Socialista daqui se transformou em uma terceira via, sem nenhuma
ligação ao que foi a social-democracia nos anos 1970.
OM: A extrema-direita em Portugal poderia se aproveitar desse desencanto
juvenil?
RV: Ela tem muito pouca relevância por aqui, quase que marginal. Creio que a
Europa tem bem viva na memória a II Guerra Mundial. E mesmo na Grécia, as
esquerdas têm uma representação muito maior do que a extrema-direita.
Parece que o descrédito dos jovens nos parlamentos e no regime democrático é
progressivo no sentido em que proclama uma democracia verdadeira, em que eles
verdadeiramente possam decidir. E não descrédito como os que defendem uma
situação autoritária, isso é muito diferente.